POLÍTICA

A burguesia está atordoada e ainda não decidiu o que fazer com Bolsonaro, diz líder do MST

Para João Pedro Stedile, Lula está no segundo turno de 2022 e elite não encontrou um nome de confiança

Por Jornal do Brasil
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Publicado em 04/05/2021 às 07:24

Alterado em 04/05/2021 às 07:26

João Pedro Stedile Rafael Stédile/divulgação

Dirigente e fundador do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o economista João Pedro Stedile, 67, disse em entrevista à Folha de S. Paulo que só a burguesia, que ele vê como responsável pela chegada ao poder de Jair Bolsonaro (sem partido), pode tirá-lo da Presidência.

"A burguesia está atordoada, confusa e dividida, entre uma direita burra, que ainda aposta tudo no Bolsonaro, e uma direita gourmet, que está envergonhada dele e ainda não criou coragem para tirá-lo", afirmou, em entrevista por videoconferência.

Integrante da direção nacional do MST, Stedile disse ainda que a reabilitação eleitoral do ex-presidente Lula (PT) "colocou um bode na sala" para a elite, que estaria indecisa entre deixar Bolsonaro definhar no cargo ou mantê-lo até as eleições de 2022, enquanto busca um nome de terceira via.

"O Lula está no segundo turno", disse ele, que apoia o petista e o descreve como o único líder político no país que consegue falar tanto com banqueiros quanto com trabalhadores de reciclagem.

Depois de 25 anos do massacre de Eldorado do Carajás, em que 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados no Pará, em abril de 1996, o militante atacou o governo Bolsonaro pela inoperância na reforma agrária, mas fez também queixas sobre a atuação dos governos do PT na pauta.

Stedile fez ainda críticas à TV Globo, atribuindo à emissora o preconceito contra o MST e responsabilizando-a indiretamente pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Procurada, a Globo não quis comentar as afirmações.

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Que dívida as gestões do PT, que não avançaram tanto em reforma agrária quanto se esperava, deixaram para os sem-terra?

Eu não diria que é uma dívida. Houve um embate político-ideológico nos governos Lula e Dilma. Como eram governos de conciliação de classes, neles conviviam o agronegócio e a agricultura familiar. E a área econômica dos dois governos via a reforma agrária como um problema de gastos.

Se o Estado quiser combater a pobreza no campo, não basta só Bolsa Família. Isso não muda a estrutura, como de fato não mudou, né? O governo deveria ter prioridade absoluta em valorizar a agricultura familiar, a produção de alimentos e a agroindústria cooperativada e desapropriar com intencionalidade. Não adianta nada desapropriar terra na Amazônia ou lá no fim do mundo.

Esses eram os tipos de embates. Mas reconhecemos também que o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário] fez políticas muito boas, como o PAA [Programa de Compra de Alimentos Antecipada] e o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar].

Ainda cabe aquele modelo de reforma agrária baseada em uma política de assentar em quantidade e sem qualidade, como nos governos de FHC e Lula?

É possível um modelo mais pontual? Quem decide qual fazenda desapropriar sempre é o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. É claro que, na hora da ocupação, escolhemos os latifúndios improdutivos, porque isso está na lei e tira o argumento do governo [contra o movimento].

Nos governos Lula e Dilma, fazíamos uma crítica ao Incra e o enfrentávamos. Para nós, não interessa tanto o tamanho [da terra]. O que queremos é que as famílias possam produzir. Do ponto de vista do movimento, seria mais interessante desapropriar áreas mais próximas das cidades, do mercado de alimentos.

Em 2009, o MST precisou invadir o Ministério da Fazenda para pedir uma reunião e acusou Lula de traição. O que mudou na militância sob os diferentes governos?

É claro que no MDA, nos governos Lula e Dilma, havia mais sensibilidade. Mas a luta de classes não se dá no governo, se dá na sociedade em geral. Já ouvi o Lula dizer várias vezes que as medidas de governo só avançariam se houvesse pressão social.

E como está sob Bolsonaro?

Desde o segundo mandato da Dilma, praticamente não houve mais assentamentos. Agora, com este governo maluco, parou totalmente. Quando você não resolve um problema social, não significa que ele desapareceu. O capitão insano que está aí vive dizendo: "Viu como não tem mais ocupação?". Mas não significa que não há mais sem-terra.

Ainda existem no Brasil 4 milhões de famílias no campo que gostariam de ter terra. E que não são loucas de fazer ocupação, de virar bucha de canhão para a polícia, para esses insanos que estão aí. A luta para a massa camponesa está difícil. Assim como para o operário da cidade está difícil fazer greve.

O governo Bolsonaro inviabilizou concretamente a atuação do MST?

Com Bolsonaro, o latifúndio vai para dentro do governo, nas figuras de Ricardo Salles [ministro do Meio Ambiente] e Nabhan Garcia [secretário de Assuntos Fundiários], ex-presidente da UDR [União Democrática Ruralista].

Mudaram completamente os personagens, a classe que você está privilegiando. Bolsonaro excluiu a agricultura familiar e desativou programas. Não houve mais nenhuma desapropriação de terra, e o governo agora está usando uma técnica que é a de reverter a reforma agrária.

Como?

Criaram o programa Titula Brasil, que na prática estimula o assentado a vender sua terra. Com um título de propriedade privada, na primeira crise ele vai vender. E será para o fazendeiro vizinho, que está doido para pegar aquela área. A proposta histórica do MST é que quem conquista terra pela reforma agrária não pode vendê-la, só pode deixá-la como herança. O certo então seria devolvê-la para o Incra.

O sr. declarou recentemente que vê a CPI da Covid como caminho para um impeachment de Bolsonaro. Como seria?

Bolsonaro é presidente não por força própria. É o espelho da burguesia brasileira. Quem botou ele lá foi a burguesia, a Globo, porque não queria o PT. Nas circunstâncias em que estamos vivendo, de crise econômica, social e sanitária, só uma coisa pode tirar o Bolsonaro de lá: a burguesia.

A burguesia percebeu que o Bolsonaro é um insano e não tem viabilidade, mas não decidiu ainda derrubá-lo porque a devolução dos direitos políticos do Lula colocou um bode na sala. O Lula está no segundo turno.

A burguesia agora está pensando se é melhor deixar que o Bolsonaro vá definhando enquanto ela encontra um nome de confiança, que eles estão chamando de terceira via, ou se é melhor derrubar logo o Bolsonaro, passar um ano e meio com o [vice Hamilton] Mourão e aí disputar eleições.

Acho que a burguesia ainda não chegou a uma decisão de qual tática é melhor. Está atordoada, confusa e dividida, entre uma direita burra, que ainda aposta tudo no Bolsonaro, e uma direita gourmet, que está envergonhada dele e ainda não criou coragem para tirá-lo. Se fosse com a Dilma, ela já teria sido crucificada, não é nem afastada.

A burguesia pode aderir a Lula?

Sim, se não viabilizar um terceiro nome com estatura. O Lula estará no segundo turno e se desenha como uma unanimidade, ampliando suas bases. Acho que o necessário para sairmos deste calvário é afastar logo o Bolsonaro, salvar vidas e ajudar as pequenas empresas.

Como apoiador do PT e de Lula, que fatura o MST apresentará caso o ex-presidente retorne ao poder?

Nós não somos comerciantes, somos camponeses. Não vamos negociar com ninguém apoio. Nós já estamos em campanha pelo Lula, não precisa vir eleição. O Lula é o principal e único líder popular que pode tirar este país desta merda que está. Nenhum outro líder consegue falar com banqueiro e cooperativa de reciclador. Só ele.

Quando ele ganhar, nós não queremos cargo. O que vamos levar para o governo é o nosso plano, de uma agricultura familiar camponesa, que tenha como paradigmas produção de alimentos saudáveis para todo o povo, distribuição de terra, implantação de agroecologia, educação no campo.

A simples expectativa de vitória de Lula no ano que vem pode mobilizar famílias para acamparem na beira de estradas à espera de um lote?

Antes da eleição, não. Mas é óbvio que os pobres do campo, quando perceberem que mudaram os ventos, que agora nós temos um governo democrático, um governo que quer produzir alimentos, vão se mobilizar. Isso não precisa ser decidido em reunião. Essas massas não vão esperar pelo MST.

Como o MST, que já foi chamado de milícia e braço armado do PT, se relaciona hoje com o partido?

Somos muito vinculados na opinião pública, e é algo verdadeiro. No fundo, somos irmãos gêmeos do PT e da CUT [Central Única dos Trabalhadores]. Nascemos no mesmo período histórico, fruto da mesma luta popular do povo brasileiro. No entanto, desde o início, tanto da nossa parte quanto da do PT, predominou o princípio da autonomia. Mas temos boas relações também com o PDT, o PC do B, o PSB. Nunca nenhum partido tentou fazer ingerência no MST.

O MST busca combater a imagem, em parte da opinião pública, de um movimento violento e radical?

Nós temos orgulho de sermos um movimento radical, no sentido de que vamos à raiz do problema. O Brasil tem uma lei de reforma agrária que permitiria distribuir terra, mas o Estado não a aplica. Então, a ocupação de terra com as famílias é a única forma de pressionar o governo. Não pode ser criminalizada.

A principal responsável por esse preconceito é a Globo, como porta-voz dos interesses do latifúndio e da burguesia brasileira. [O MST] só aparece na Globo como se fosse um movimento violento, radical, que agride. O lado bom a Globo não publica. Quantas vezes se viu, por exemplo, o Jornal Nacional noticiar que na crise da Covid nós distribuímos comida na periferia?

Concorda com o diagnóstico de que movimentos sociais acabaram enfraquecidos pelos anos do PT no governo?

Houve um arrefecimento das lutas de massa, mas isso não é predeterminado. São as circunstâncias da luta de classes. É verdade que muitos dirigentes experimentados do movimento sindical foram para o governo, mas é natural que isso aconteça, até pelas origens do PT.

Nós vivenciamos um cenário de pleno emprego, o que faz com que a luta mude um pouco. Em vez de emprego, você luta por salário. Essa situação afetou também o MST, porque provocou um êxodo [rural]. Aquela política de conciliação de classes, com um governo que reunia burguesia, banqueiros, classe média, trabalhadores e mais pobres, gerava um clima de governo para todos.

O sr. fala de conciliação de classes, mas Lula e outros dirigentes do PT dizem que o impeachment de Dilma se deu em parte porque a elite não tolerou a ascensão dos mais pobres.

Há muitas leituras, mas acho que o que derrubou a Dilma foi uma conjugação de fatores. O primeiro, e fundamental, foi a economia. Numa crise, acaba a conciliação de classes. A burguesia se voltou contra a Dilma, e a classe trabalhadora sofreu com o desemprego e as condições de vida. Esse é o fator determinante do fracasso do governo. Não foi misoginia. Isso de "porque é mulher" é conversa.

O segundo fator é o pré-sal. Os americanos já estavam de olho nele e não queriam o Brasil como um ator na política internacional. O terceiro fator é que os meios de comunicação, sobretudo a Globo, todo o tempo eram: Lula ladrão, Dilma incompetente. Sempre fomos solidários à Dilma, mas não porque gostássemos do governo. Tínhamos críticas ao programa de reforma agrária, mas ali estavam em jogo a democracia e um projeto econômico.

João Pedro Stedile, 67
Graduado em economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e pós-graduado pela Universidade Nacional Autônoma do México, é integrante da direção nacional e um dos criadores do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Fundado em 1984, o MST está presente em 24 estados e no Distrito Federal, com cerca de 500 mil famílias vinculadas. Marxista e ativista de esquerda, Stedile também é um dos fundadores da Frente Brasil Popular, que congrega outras organizações sociais.(Joelmir Tavares/Folhapress)