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Em busca do Brasil do Bem(6): entendendo a confusão

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 12/06/2022 às 09:14

Alterado em 12/06/2022 às 09:14

Dois fatos marcaram esta semana. O primeiro no Brasil; o segundo nos Estados Unidos da América. Ambos notoriamente chocantes. No Brasil, o empobrecimento do povo confirmado pela absurda cifra de 33 milhões de brasileiros a passar fome. Nos Estados Unidos, as audiências públicas sobre a invasão do Capitólio em que a Democracia agonizou.

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos da América a humanidade se animaliza, se torna bestial, demoníaca. No Brasil, teme-se uma crise constitucional anunciada por quem deveria ser o principal responsável por impedi-la; nos Estados Unidos, a possibilidade de conflito racial sangrento deixa de ser uma possibilidade e a cada dia se torna mais plausível.

Na raiz dos conflitos políticos e sociais dos dois países uma evidência surge, embora muitos se esforcem para escamoteá-la na esperteza de sugar o leite a escassear em úberes murchos. Estamos a assistir o fim melancólico de uma ordem política-econômica que dominou o cenário do mundo ocidental nos últimos 40 anos, conhecida por neoliberalismo ou globalismo financeiro.

Do fim da segunda-guerra mundial até os dias de hoje foram três os movimentos políticos e econômicos a ocupar nossa atenção e a decidir nossos destinos: o “new-deal, a guerra fria e o neoliberalismo. Não pretendo aqui fazer o histórico exaustivo dos três movimentos, mas apenas chamar a atenção para seus aspectos mais salientes, com o único objetivo de expor opções políticas para o Brasil neste ano decisivo para o destino de nossos filhos e netos nas próximas décadas. Aos que se interessem em aprofundar os temas aqui sumariados, recomendo o livro “The rise and fall of the neoliberal order”, de Gary Gerstle, professor de história nos Estados Unidos, publicado recentemente e, que eu saiba, ainda não traduzido para o português. Há um interessante debate do livro com o próprio autor, no Youtube, com legendas em inglês.

O New-Deal, implementado por Roosevelt, permitiu que os Estados Unidos se transformassem na primeira potência militar e econômica do mundo e, como sabemos, num polo de difusão cultural e artística sem par. A classe média americana viveu os anos dourados difundidos com o invejável “american way of life”. Este período em grande parte coincidiu com a chamada guerra-fria, em que a União Soviética era o contraponto a ser contido ideológica e materialmente.

Em grande parte, o medo de que o Comunismo pudesse contaminar o desenvolvimento capitalista favoreceu a implementação de políticas de amparo social e promoção do bem estar das classes trabalhadoras, permitindo-lhes usufruir de conforto compatível com salários previsíveis e ajustáveis. Abstração feita dos problemas de segregação racial que se exacerbam a partir da década de 60 do século passado, a era kenneysiana do “New-Deal” se estende até os anos 70.

A estagnação do lucro e a concorrência internacional vindas de uma Europa e de uma Ásia reconstruídas parecem estar na origem do movimento neoliberal, em grande parte promovido por financiamento privado, interessado em buscar a retomada da espiral da acumulação capitalista. Estamos adentrando, nesta época, nos Estados Unidos, à fase dominada politicamente por um Partido Republicano onde figuras como Goldwater e, muito particularmente, Ronald Reagan tornam-se porta-vozes de uma nova ordem econômica, em que a regulamentação do Estado sobre a politica salarial e social é questionada como impeditiva da liberdade empresarial.

Reagan, eleito presidente no bojo dessas novas tendências, iria notabilizar-se pela drástica redução do imposto de renda sobre as corporações - que passa do teto de 80% a 38% ao fim de seu segundo mandato - e pela eliminação de salvaguardas do bem-estar social com a desarticulação de agências reguladoras e do sindicalismo. Esta tendência se aprofunda e se universaliza nos anos posteriores a Reagan, que não deixou de inocular no desmanche social, a podre semente de que na sociedade americana haveria uma inquestionável divisão racial em que uma raça seria imerecedora dos mesmos direitos atribuíveis à raça branca. É esta clivagem que se aprofunda com a crise das hipotecas em que a financeirização oportunista levou ao esmagamento da classe média americana e sobretudo dos negros e hispânicos nos Estados Unidos.

Trump assume o poder após Obama, um negro que lhe parecia uma anomalia na sociedade americana, e a quem, Trump, em sua visão racista, atribuirá a responsabilidade pelo que considera uma delirante política contra os brancos, em especial o Obamacare, assistência médica universal nos Estados Unidos, ainda que muito aquém do nosso SUS.

Trump, cujas propaladas características de empresário bem sucedido são contestadas por seus pares, chega à presidência após anos de sucesso em programas de televisão de forte conteúdo autoritário. Visivelmente inculto, despreparado, porém com inegável carisma mediático, transporta para o teatro político o circo das lutas corporais e atrai considerável eleitorado ressentido com as perdas históricas de renda e “status” ao longo dos anos do neoliberalismo. Sua última canalhice foi repudiar a própria filha, a quem condena por ter publicamente se dissociado da aventura criminosa do pai.

Para continuar no mesmo quadro cronológico, o Brasil terá no final dos anos 50, com JK, sua maior revolução econômica, cultural e democrática do século passado, quando a “a Marcha para o Oeste” transforma o Brasil num país medianamente industrializado e culturalmente moderno com o início do movimento feminista, o cinema novo e um teatro de costumes revigorado. Sem falar na música popular, óbvio.

Também por influência da guerra-fria e do espantalho do comunismo aqui mesclado com um patrimonialismo histórico, o desenvolvimento econômico muda de direção e abandona prematuramente a luta contra o subdesenvolvimento - tão magistralmente descrito por Celso Furtado - e embarca na aventura do neoliberalismo, agravado pelo "Consenso de Washington" e a aceitação intempestiva de regras de um comércio internacional nominalmente livre e subrepticiamente concentrador de renda.

A luta contra o subdesenvolvimento é substituída pelo "terno de defunto“ do neoliberalismo em que a criação da OMC constrange mais do que liberta o desenvolvimento nacional, através de regras monopolísticas abusivas, altamente restritivas na área de propriedade industrial - em que a Big Pharma impõe regras constrangedoras à indústria farmacêutica nacional e ao acesso a medicamentos - malandramente liberalizantes na área de compras governamentais e na construção de um quase-judiciário comercial em que as sanções sempre se dirigem no sentido Norte-Sul.

Mal ou bem, o Brasil resiste a acordos internacionais de comércio francamente desequilibrados e escapa de uma submissão em garrote proposta pela ALCA, em que o Itamaraty pagou o preço alto de ser considerado estatizante ou esquerdista, mas que o advento de Trump e seu protecionismo larvar mostraram o tamanho do buraco em que deixamos de cair.

A entrega da economia brasileira a um super-ministro neoliberal, apresentado ao público como o "nec-plus-ultra " dos postos Ipiranga promoveu o desmonte da indústria de transformação manufatureira, pauperizou a ciência e a tecnologia brasileira, esgarçou o sistema educacional público, e não fosse pelo SUS e - justiça seja feita - pela Anvisa, nosso morticínio na pandemia teria sido ainda mais bárbaro e selvagem. Não fossem a Fiocruz e nossa tecnologia na área de vacinas, seríamos uma Biafra.

O que importa ressaltar é que o transplante do neoliberalismo, a política do austericídio, a macaquice de imitar os urros de Trump nos levaram a uma sociedade empobrecida. A reforma trabalhista, anunciada a quatro ventos como modernizante e indutora de um capitalismo do pequeno empresário, resultou no estratosférico desemprego de milhões de brasileiros e no sub-emprego precário de outros tantos. Aqui, como nos Estados Unidos, a economia mal-gerida é o pretexto para a gestação de movimentos neo-nazistas como o dos "Proud Boys" que, com o apoio explícito do desclassificado Trump, invadiram o Capitólio em ostensiva caça ao vice-presidente da República e à presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, para simplesmente matá-los. Esta, a maior ignomínia de Trump, que não poderá escondê-la, como esconde sua declaração de imposto de renda.

Aqui no Brasil há quem defenda a mesma ou pior barbaridade. O presidente da República não é responsável por todos os nossos infortúnios atuais, mas é inegável sua determinação em armar a população. Nunca se defendeu tanto a posse de armas como instrumento de defesa do Estado Democrático. Não somos e não queremos ser um país como os Estados Unidos da América em que adolescentes se dedicam à macabra aventura de matar colegas e professores. Bolsonaro está a viver um momento decisivo em sua biografia política e desenha o seu papel em nossos livros de História. Deus queira que tenha a sensibilidade de reverter este liberalismo armamentista e que com a canetada de um decreto exija - até 7 de setembro de 2022, data do bicentenário de nossa Independência - o imediato registro junto ao Exército brasileiro de armas e munições, de tal forma que se possa rastrear sempre a origem da bala e do fuzil assassino. Pelo menos isso, presidente.

Nos encaminhamos para as eleições mais importantes nestes meus 82 anos de vida. Quero estar vivo para registrar na urna eletrônica, confiável e sempre auditável, meu voto pela restauração do Brasil. Mal ou bem, a aliança Lula-Alckmin é a verdadeira primeira, segunda e única vias. Tenho o maior respeito por Ciro Gomes, a quem tive o prazer e a honra de acompanhar quando ele, então prefeito de Fortaleza, recebeu na ONU um prêmio por sua gestão principalmente, na área de Educação. Tenho igual respeito pela Senadora Tebet, cuja dignidade de política e mulher tanto admiramos durante a CPI da Covid-19. Lamento muitíssimo o esfacelamento do PSDB, partido que abrigou homens como Mario Covas, mas onde também se vê que a "virtu" política não é infelizmente geneticamente transmissível.

E finalmente, sempre é bom lembrar, o senhor de nosso destino é nossa convicção cívica. Mais do que nunca acredito no meu povo e no meu país.

*Embaixador aposentado

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