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Trumpismo e suas cepas (2): a defesa constitucional

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Por ADHEMAR BAHADIAN, [email protected]
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Publicado em 10/10/2021 às 08:31

Alterado em 10/10/2021 às 08:32

A semana nos trouxe algum alívio depois de tantos confrontos com a miséria e a mediocridade. De fonte segura nos chega a notícia a badalar sinos de catedrais: os índices de mortandade da Peste do Covid caíram de forma inquestionável até mesmo pelo pior e mais degenerado negacionista. Prova irrefutável de que as vacinas funcionam, libelo acusatório irrespondível pelos sicofantas a retardar a aplicação delas no povo brasileiro.

Agrava-se este crime contra a humanidade, perpetrado com requintes de crueldade, deboche salpicado de cupidez dolosa aos cofres públicos como se constata, seja nos vergonhosos depoimentos, seja no silêncio crepuscular de testemunhas amparadas em habeas-corpus nas sessões da CPI do Senado.

Evidencia-se mais uma das infortunadas experiências golpistas antidemocráticas influenciadas pelo mimetismo irracional dos métodos trumpistas. Hoje, é público Trump ter perdido as eleições em 2020, dentre outras razões, inclusive psicológicas, por não ter sido suficientemente transparente sobre a importância do isolamento social no combate à Peste. Trump nunca duvidou da eficácia das vacinas como eficaz método de controle da doença, e tentou por meios legais e impróprios acelerar a produção de vacinas em seu país, pressionando inclusive o FDA, a Anvisa local, e os presidentes das grandes farmacêuticas americanas. Investiu bilhões de dólares na produção e compra das vacinas, que só não tiraram ainda os Estados Unidos do mapa necrófilo da Peste porque lá correntes religiosas e leigas se opõem à vacinação sob qualquer de suas formas.

Este exemplo de Trump foi um dos raros não copiados por Bolsonaro e altas autoridades brasileiras. Por quê?

As vacinas aqui foram estigmatizadas, o SUS desqualificado, o programa nacional de vacinação - exemplo invejado por países mais desenvolvidos que o Brasil - desaparelhado e desarticulado, e ainda assim temos que reconhecer que se não fosse o SUS, a Fiocruz e o Butantam, talvez até hoje estivéssemos em crescente e incontrolada pandemia.

Até hoje não se explicou devidamente à sociedade brasileira a razão por que aderimos de forma tão míope às políticas trumpistas como se elas fossem o caminho redentor dos males sociais e econômicos do Brasil. Tarefa, espera-se, seja cumprida pela CPI do Senado Federal.

A começar pela política externa, objeto da chacota e perplexidade universais, o Brasil, dois anos e meio depois de vigorosamente associado ao trumpismo e seus vícios de caráter e genética, se encontra em estado de calamidade pública sem que se vislumbre correção de rumos e se aprofunde uma política de ódio em chocante confronto à cordialidade histórica que mal ou bem sempre defendemos.

Tal como Trump já começou a fazer nos Estados Unidos - tema de que me ocupei na primeira parte deste artigo publicado neste jornal no domingo passado - tenta-se no Brasil manter a sociedade dividida em torno de mitos e "fake news" com o único objetivo explícito de tornar qualquer alternativa ao modelo atual de descalabro insubstituível a não ser por regimes totalitários ou iliberais.

Escorregamos na armadilha em que já parece ter caído a maior potência do mundo em que apenas a retrogressão política e cultural pretende nos livrar de disputas religiosas e ideológicas historicamente passíveis de convivência e hoje relegadas ao tudo ou nada da desconstrução autoritária.

Nossa economia faliu. Ponto. A inflação ressurge faminta. Tão faminta como faminto estão milhões de brasileiros. Voltamos ao mapa da fome, conforme anunciado pelas Nações Unidas. A política econômica do governo insiste em seguir o trumpismo neoliberal sem sequer fazer menção a alternativas. Produzimos petróleo, mas a gasolina é cara, ajustada ao dólar, que subiu e continua subindo. O preço do gás de cozinha faz o povo comer cru. Engana-se o povo subtraindo-se de um bolso a migalha a cobrir o rombo no outro. Uma política de astúcias sociais eminentemente eleitoreiras. Que escolas iluminadas de economia política defendem essas pilantragens? Como se pode falar em Deus ou Cristo em Evangelho ou Bíblia como inspiradores de uma política que enluta famílias, joga na mendicância crianças, torna a formação universitária um luxo de ricos e a formação de cientistas uma excrescência marginal?

Mas, Deus seja louvado, ainda temos defesas poderosas. Em artigo recente chamei a atenção para as palavras iluminadas do Ministro Ayres de Brito, hoje disponíveis nas redes sociais. Esta semana ouvimos e vimos uma não menos profunda análise do Ministro Luiz Roberto Barroso, Presidente do Superior Tribunal Eleitoral, e o papel da Constituição de 1988 na defesa de eleições livres, auditáveis e eletrônicas. Resultam dessas análises, bem como de outras como a do Ministro Fux, Presidente do Supremo Tribunal Federal, e das ações investigativas dos demais Ministros, a modernidade e qualidade de nossa Constituição. O compromisso com o Estado de Direito e o devido processo legal fazem dela um paradigma da Democracia e do bem estar social.

Ao analisar o que se pretende fazer com emendas constitucionais maliciosas não se pode fugir aqui também a uma infeliz afinidade com o Trumpismo em busca de uma democracia iliberal com mirada inconfessada num regime autoritário de governo a serviço da desigualdade social.

E que se não distorça como antiamericanismo o que aqui digo. Tenho admiração pelos Estados Unidos, país onde vivi mais de uma década por razoes profissionais. O que repilo é o desmonte dos compromissos democráticos capitaneados por um grupo poderoso que fez de Trump um subversivo agente de uma sociedade em clivagem suicida. Clivagem com origem na segregação racial, na supremacia branca e na desregulamentação dos mecanismos de controle do capitalismo dito neoliberal.

E sobretudo repilo os que defendem a transferência deste modelo para o nosso país. Por ignorância política, cupidez argentária ou rematada desfaçatez . Em qualquer hipótese, crime de lesa-pátria.

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