ARTIGOS

Ideologia e irrelevância

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Por ADHEMAR BAHADIAN, [email protected]
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Publicado em 13/06/2021 às 09:22

Alterado em 13/06/2021 às 09:22

A última (pelo menos até o momento em que escrevo este artigo) máxima cultural proveniente dos cimos governamentais desaconselha o uso de máscaras cirúrgicas por todos os brasileiros vacinados contra a Peste ou por ela já anteriormente infectados. A par de ser mais uma das orientações sanitárias estapafúrdias dirigidas ao povo brasileiro, a razão desta proposta, no momento em que não mais do que 12 % da população foi vacinada, aponta para sua irrelevância, mas revela a ideologia negacionista a revestir a maioria, senão a totalidade, das orientações oficiais e oficiosas com que temos sido brindados pelos responsáveis pela saúde pública neste doloroso momento pandêmico.

Há na assertiva intempestiva contra a máscara, um conteúdo absolutamente chocante sobre sua aparente inteligência. Diz o presidente, certamente mal assessorado, que as máscaras, a par de serem incômodas - e quanto a isto não há dúvida - apenas identificam e protegem os “infectados” pelo vírus.

Daí segue, por lógica elementar, que os rostos desnudados serão os dos sadios, dos libertos e, por óbvio, os rostos cobertos por máscaras são como as sinetas dos morféticos no Medievo. Fácil perceber ser o uso da máscara um estigma e não uma prova de auto-proteção e de harmonia social. Usá-la, nesta concepção mal-avisada, seria atrair a repulsa e o temor dos eventuais circundantes. O conselho, se seguido à risca, levaria efetivamente à propagação do vírus em velocidade e profundidade assustadoras. Coisa de merecer o Nobel da virulência.

Lembrei deste fato por ilustrar o reino de ideologia e irrelevância em que já há alguns anos, o Brasil se especializa ao mostrar-se ao mundo como se houvesse descoberto uma nova leitura do código de Hamurabi. Enquanto essa releitura apenas nos expõe ao ridículo - como a teoria da terra plana - com ela convivemos entre agastados e conformados. Afinal, foi pela força do voto popular que elegemos doutos senhores a iluminar nossas inteligências.

Dois anos e meio passados, este caleidoscópio de ideologia e irrelevância nos parece conduzir a sítios tenebrosos e nos assombra a persistência, tanto na ideologia quanto na irrelevância, de contornos sempre mais descabidos, sobretudo ao acrescentar às dores da Peste um receituário alquimista, quando não irresponsável.

O mundo mudou e ficamos atados não só a ideologia e irrelevância, mas sequer nos apercebemos dos movimentos contrários ao Trumpismo a espalhar-se mundo afora, a começar pela seriedade com que se investiram recursos humanos e emocionais para proteger os povos da terra contra a Peste. Hoje sabemos como fomos indiferentes e até displicentes com a saúde pública por razões negacionistas, ideológicas e possivelmente criminosas. Seguimos perplexos as apurações no Senado Federal pois ali desfilam em abundância as consequências de uma ideologia infelizmente não irrelevante e profundamente anti-patriótica.

Tão assustador quanto o descalabro da política de saúde pública, revela-se a política econômica do governo, ideológica e ancorada em teorias ou receitas em franco processo de desmoronamento como a hiper-globalizacao e o neoliberalismo. Às vezes, tenho a sensação que entre nossas autoridades econômico-financeiras e as do mundo ocidental ergueu-se uma “Muralha da China” de surdez e não chegam aos ouvidos de nosso Mandarim os movimentos tectônicos a transformar o relevo do capitalismo pós-Peste e sobretudo pós-Trump.

Continuamos com a mesma logorreia histérica e obsessiva em defesa de uma política econômica a léguas de distância da justiça social proposta pela Constituição de nosso país e a anos-luz das reformas em gestação nos países ocidentais, em particular às dirigidas a um novo comportamento do Estado em rejeição às doutrinas surgidas nos anos 80 do século 20 estimuladas por Mies, Friedman, Hayek e implementadas por Reagan e Thatcher. Neste fim de semana, os Estados Unidos da América e os países da União Europeia deliberam sobre a maior reforma das taxações das empresas transnacionais no Mundo. Não por serem bonzinhos, mas porque a música desafinou. E hoje já ninguém acredita nos contos de fadas do neoliberalismo, suas mumunhas suas mamatas. Pior, todos sofremos as consequências dos desarranjos sociais por ele provocados.

E enquanto aqui no Brasil nosso mágico de Oz nos seduz com propostas regressivas de taxas e impostos, defende com unhas e garras o achatamento do Estado, no mundo esférico e civilizado se inicia um combate cerrado às manobras de evasão fiscal das transnacionais e se arquiteta, principalmente nos Estados Unidos da América, uma política industrial - já aprovada na Câmara dos Deputados com maioria de Democratas e Republicanos - cuja tônica é o investimento público. A conversa de que o mercado tudo harmoniza e regula apodreceu de vez como a flor do lodo trazido pela Peste. Impermeável a rumos cujo potencial restaurador é evidente, nossa Corte governamental absolutista, arrogante, autocrática e autoritária se revela indiferente a quase meio milhão de mortos por incúria, ideologia e ineficiência.

A ideologia da irrelevância insiste em cortar dotações universitárias e de pesquisa, e em nome de um teto de gastos, a cada dia mais furado para benefício de castas a serviço do Rei, congela salários, demite professores, desmonta instituições de defesa do meio-ambiente, hesita em dar “dois ou três“ meses de auxílio emergencial e faz de conta desconhecer que a situação macroeconômica do país só não é pior porque o auxílio emergencial de 600 reais movimentou (em 2020) as engrenagens emperradas da demanda.

Nossa Diplomacia, desfigurada pela intervenção do Mandarim nas negociações econômicas internacionais, quase nada pode fazer diante da fúria neoliberal a presidir nossa rastejante entrada na OCDE, nossa tremedeira nas negociações sobre patentes e vacinas na OMC, nossa incapacidade de diálogo construtivo com a Argentina, com a Índia, com a China desconhecendo a regra básica da Diplomacia de que os governos passam e os Estados ficam. Mas, infelizmente há quem confunda Estado com Fintech e política externa com emissão de IPOs. De qualquer modo, pelo menos o Itamaraty abandonou a pajelança tatibitate a nos ridicularizar nos dois últimos anos.

Nosso assanhamento na política de meio-ambiente, quem diria, pousou no Supremo Tribunal Federal e pode terminar na Papuda. Nada escancara de forma mais obscena o dolo irreparável contra uma política cuidadosamente articulada nos últimos trinta anos sobre clima e meio ambiente como as artimanhas expostas na desarticulação do INPE, do Ibama e possíveis associações com o tráfico ilegal de madeiras nobres. Será tarefa de anos restaurar nossa credibilidade numa área nevrálgica das relações internacionais contemporâneas e voltarmos a gozar do respeito anteriormente adquirido por governos sucessivos desde os anos 85.

Nesses quatro anos e meio, a datar de um impedimento no mínimo controvertido de um governo legitimamente eleito, estamos sendo submetidos a inflexões políticas e econômicas de claro antagonismo aos princípios fundamentais de justiça social inscritos em nossa Constituição de 1988. Embora seja ainda prematuro considerar o governo e sua ideologia como inconstitucionais, não há como deixar de registrar as forças regressivas da ideologia política aliada a um neoliberalismo moribundo a gerir os negócios do Estado brasileiro.

Surpreende que a cidadania brasileira assista anestesiada às ininterruptas manifestações de hostilidade a instituições fundamentais do nosso tecido democrático, vê-lo esgarçar diante de provocações quase diárias por autoridade legalmente investida, por força do voto e pelo juramento à Constituição, na nobre tarefa de preservar a unidade territorial, a harmonia entre os poderes federal e estaduais, e a defesa da legalidade. Impossível não enxergar a maré montante de um divisionismo artificialmente gestado com risco iminente de tensões insuperáveis por ódio político de que os totalitarismos de ontem e de hoje são pródigos em acalentar.

Ainda recentemente vimos a quase-tragédia porque passaram os Estados Unidos da América, cindidos pelo aprofundamento das fraturas sociais e étnicas daquela sociedade por um gestor convencido de sua onipotência narcísica, irresponsável e determinado a chegar ao confronto sangrento, porém, felizmente, não seguido em suas maquinações golpistas pelas Forças Armadas de seu país, inclusive nas alegações de fraude eleitoral, cantilena em moda pelos candidatos a governos autocráticos, como vemos até mesmo em Israel.

E assim passam os dias, em ritmo de tango fúnebre, em que Al Pacino, o cego, pretende conduzir a bailarina escolada. Nada mais se pode fazer, além de contenção de danos, o que começa pelo uso de máscaras, pois fomos bem-avisados do que nos espera se assumirmos cordura de ovelhas a serem tosquiadas. Máscaras, vacinas, testes constantes contra o domínio da Peste e sobretudo uma inarredável defesa de nossos direitos constitucionais nos evitarão a reinfecção fatal.

*Embaixador aposentado