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O que aprendemos com o caso Tatiane Spitzner

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Por LÍDICE LEÃO, [email protected]
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Publicado em 13/05/2021 às 19:46

Alterado em 13/05/2021 às 19:46

Quando a advogada Tatiane Spitzner foi assassinada, chamaram atenção as imagens que mostravam o marido a agredindo em diferentes cenas: dentro do carro do casal, no estacionamento do prédio em que moravam, no elevador. Foram socos, chutes, puxões de cabelo, um “mata-leão”, empurrões. Em seguida, Tatiane, de 29 anos, apareceu morta, depois de ser jogada pelo marido do quarto andar, do apartamento em que viviam.

Luís Felipe Manvailer, o marido, negou tudo desde o início, mas foi preso na manhã seguinte à morte e indiciado por homicídio qualificado. A denúncia do Ministério Público foi aceita pela Justiça e o biólogo se tornou réu. Essa semana, quase três anos depois do assassinato que chocou o país e revoltou as mulheres, ele foi condenado a 31 anos, nove meses e dezoito dias de prisão, nas qualificadoras de feminicídio, motivo fútil, meio cruel e asfixia. Embora caiba recurso, Luís Felipe não poderá recorrer em liberdade.

A condenação do professor é considerada uma vitória na luta permanente contra a violência de gênero e a violência doméstica, males que viraram uma epidemia no país em plena época de pandemia. Embora seja estranho usar a palavra “vitória” em um caso tão grave, por ser um vocábulo com significado positivo, é a expressão mais adequada quando se trata de deixar claro que mulheres não devem ser mortas e nem agredidas pelo fato de serem mulheres. Em um país onde a misoginia anda de mãos dadas com uma estrutura historicamente machista, a condenação de um professor branco, de classe social privilegiada, que dirigia um carro caro e morava em um apartamento com fachada elegante pode ser considerada um marco na vigilância atenta dos movimentos feministas.

Porém, – quando o assunto são os avanços das mulheres sempre há um porém – um aspecto do julgamento merece atenção especial: o juiz do caso considerou que Tatiane Spitzner sofria, há pelo menos um ano, violência psicológica por parte do marido. O magistrado considerou as ofensas e humilhações que o professor dirigia à mulher como critérios para aumentar a sua pena. Tal decisão foi motivada pelas pesquisas que a advogada fizera na internet pelos termos “agressão verbal marido”, “meu marido me ofende com palavras” e “terror psicológico marido”.

As procuras por essas expressões por parte de Tatiane abrem caminho para uma constatação preocupante: a mulher que acabou morta sofria abusos psicológicos do marido, sem conseguir se defender, sem saber como agir. E vem a dúvida cruel: será que se tivesse pedido socorro, dito a alguém sobre os ataques psicológicos, Tatiane teria recebido apoio, acolhimento, cuidado? Ou teria sido olhada e tratada com descrédito? Ou, pior, considerada culpada por provocar no marido esse tipo de atitude? A própria sentença aponta que “a vítima, há muito tempo sofria com as atitudes agressivas e de menosprezo do condenado, que a deixavam emocionalmente abalada a ponto de manter um relacionamento abusivo”.

Variadas conversas, entrevistas e pesquisas que elaborei sobre abuso e violência doméstica apontam o feminicídio como o ponto final de uma trajetória abusiva, de grande sofrimento psíquico para a mulher que termina assassinada. Precisamos nos perguntar quantos crimes poderíamos ter evitado se tivéssemos oferecido o olhar, o cuidado e a escuta às nossas irmãs que sofriam sozinhas. Precisamos nos questionar se não estamos reproduzindo, sem perceber, o que a herança machista da sociedade nos fez internalizar e normalizar em décadas, séculos. O sofrimento psíquico da mulher provocado e alimentado por um relacionamento abusivo não é normal. Vamos refletir se estamos atentas a isso?

Afinal, as palavras da moda nos movimentos feministas são “sororidade” e “empatia” – a união entre as irmãs mulheres na forma de ajuda, solidariedade, compreensão, em vez da competição e do julgamento; se colocar no lugar da outra, sempre. Se a nossa irmã está sofrendo, não, a culpa não é dela. Vamos partir daí. O caso Tatiane Spitzner pode ser um grande aprendizado.

Lídice Leão é jornalista e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, onde pesquisa o sofrimento psíquico da mulher. É pesquisadora do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO) do Instituto de Psicologia-USP.