ARTIGOS

Sobre privatizações

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Por RICARDO A. FERNANDES, [email protected]
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Publicado em 04/03/2021 às 17:26

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Semana passada meu celular tocou. Era o número de um amigo. Estranhei, pois há tempos não nos falávamos. Deixei tocar duas, três vezes, me preparei para alguma notícia indesejada. Respirei fundo, atendi e falei com uma voz otimista. Aliviado, ouvi seu tom ameno e saudações de costume.

Conversamos sobre nossas famílias, conhecidos, até ele mencionar o assunto que o angustiava e compreendi, então, o motivo da ligação. Há mais de vinte anos administra uma loja de rua fundada pelo pai, esse já em casa devido à idade avançada. A situação não vem bem faz uns sete, oito anos. Clientes passam, olham as mercadorias e saem de mãos vazias. Fornecedores aumentam o preço dos produtos, seus custos crescem. Ajusta aqui, reduz o estoque, segura o bolso para manter o emprego dos funcionários. Os meses melhores compensam períodos de baixa. No final do ano, tirando as despesas domésticas, com sorte ele fecha no zero a zero.

Ano passado a pandemia quase acabou com o ganha-pão de mais de meio século, sustento de duas gerações da família. Ele me perguntava coisas para as quais eu não tinha resposta, se deveria solicitar mais um empréstimo ao banco, não teria como pagar. Mais do que pedir conselhos, a conversa ia para o lado do desabafo. Um ano a mais ele seguraria, mas até quando?

Acompanhei de perto seu trabalho, o desenvolvimento do seu negócio, a energia colocada em cada nova prateleira, o cuidado com a aparência do estabelecimento. Ao fechar a loja, no final do expediente, faz uma pequena oração e agradece. Aprendi, também com ele, como tratar bem clientes pouco civilizados. “Todos têm dias ruins”, dizia ante à falta de educação alheia. Nesses momentos, lembro-me de vê-lo respirar fundo, colocar a mão na cintura e comprimir levemente o baço com o indicador e o polegar, sempre com um sorriso no rosto. Daí entendi perfeitamente quando, no meio da conversa, ele se indignou ao comentar sobre uma situação: cogitou vender a loja, sondou concorrentes, e recebeu propostas que deixariam seu pai envergonhado.

“Um trabalho de décadas, sem valor nenhum, depois de todos esses anos”, comentou. Ele entende a situação de mercado, o jogo dos concorrentes, os balanços sem lucro. Está acostumado ao ambiente do seu negócio. Mas, apesar das adversidades, luta para não passar o ponto, a loja que faz parte da família. Desliguei o telefone e a conversa ficou martelando meus pensamentos.

Lembrei do bate-papo com esse amigo ao ler nos jornais, com extrema preocupação, o movimento de privatizações do atual governo. Sob o discurso de estado mínimo, livre concorrência e geração de empregos, querem privatizar empresas como, por exemplo, a Petrobras. Uma empresa, cuja maior acionista é a população brasileira, representada pelo governo federal, com mais de 50% das ações ordinárias. Agora, uma pergunta: se sua empresa, ao contrário do negócio do meu amigo, tivesse fechado o péssimo ano de 2020 com um lucro líquido de R$ 7,1 bilhões de reais, você a venderia? É o caso da Petrobrás (Fonte: site da Petrobras).

O Banco do Brasil, outra bola da vez, obteve um lucro ajustado em 2020 de R$ 13,9 bilhões (Fonte: site do Banco do Brasil). Os Correios, mais uma estatal na mira do especulador travestido de ministro, vêm obtendo resultados positivos desde 2017 e a expectativa é de ter fechado 2020 com lucro na casa do bilhão.

Você colocaria à venda essas três valiosas e lucrativas empresas suas? O mais interessante é que muitos brasileiros, assolados pela crise à semelhança desse meu amigo, são a favor das tais privatizações. Como se, ao privatizar, trocássemos a corrupção da política pela eficiente gestão empresarial. Como se não houvesse empresários corruptos e a iniciativa privada fosse imune à formação de cartéis.

Só consigo atribuir esse pensamento à enorme distância que separa os universos público e privado. Aceitar vender empresas, muitas seculares e lucrativas, investimento de gerações, sem saber exatamente em que o dinheiro da venda será aplicado? Sem a garantia de preços menores nos postos de gasolina? Entregas de encomendas mais rápidas e baratas? Juros bancários menores? Vender empresas construídas com o dinheiro de impostos dos contribuintes – nós, os contribuintes – sem garantia alguma? Você faria mesmo isso com o seu negócio?

Acreditar num ministro da economia e seus assessores, um grupo que se comunica com os brasileiros por meio de discursos vagos, de um populismo neoliberal barato e ineficiente, e que quer vender suas empresas é arriscar-se, sem necessidade, a fazer um péssimo negócio. Um ministro cujo chefe aposta na morte da população e se esquiva da responsabilidade homicida para se reeleger em 2022.

Publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.