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Política externa e saúde pública: assim caminha a humanidade
Por ADHEMAR BAHADIAN, [email protected]
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Publicado em 14/02/2021 às 09:50
Alterado em 14/02/2021 às 09:51

Ele não deveria ter mais do que 1,65 m de altura. Vestia safári cinza claro e andava com desenvoltura, sem pressa e sem o falso vigor de políticos moderninhos. Chefe de Estado, trazia na mão esquerda um pequeno bastão de madeira, incrustado com recortes de datas ou símbolos nacionais. Estávamos todos sentados numa arquibancada circular. Éramos representantes de 120 países e juntos deveríamos ser aproximadamente 800 pessoas.
Sabíamos das histórias dele, um dos últimos líderes das lutas pela independência da África negra. Sua entrada foi precedida por cantos alegres de seu povo a saudá-lo desde a saída do carro até o palco. Ele sorria. Um sorriso discreto habituado àquelas demonstrações de carinho por um velho guerreiro. Tinha cabelos brancos a pintar o passar do tempo e as dores das lutas em sua vida.
Chamava-se Julius, mas era conhecido por Nyerere. E estava ali para formalmente abrir, como anfitrião, a reunião dos países em desenvolvimento, também chamado de Grupo dos 77, na cidade de Arusha, na Tanzânia.
O discurso não foi lido e talvez tenha sido um dos mais belos e fortes a que assisti em reuniões internacionais. Guardo dele até hoje uma frase e aqui a recordo sem pretensão de citá-la "in verbis" e muito menos a de transmitir a força retórica de Nyerere.
Suave, com um quase sorriso nos lábios, Nyerere nos alertou: aqui entre nós há países socialistas, capitalistas e até mesmo autoritários, talvez fascistas. (pausa) Mas por que estamos aqui juntos? (pausa) Porque, apesar de todas nossas diferenças circunstanciais, sabemos ser a luta pelo desenvolvimento de nossos povos a força a nos unir e o elo de solidariedade entre nós.
A frase foi ouvida em absoluto silêncio, pois conhecíamos a profunda honestidade de quem a falava e porque se endereçava aos críticos do Grupo dos 77, estigmatizado em alguns países (o Brasil, dentre eles) como movimento de colorido comunista. E Nyerere apontava para o desenvolvimento como nossa bandeira comum e etapa final da real independência de nossos povos. O atraso como metastática forma de colonização, resistente à soberania política plena.
Recordo o episódio porque poucos anos depois, um dos efeitos mais deletérios do neoliberalismo de Reagan e Tatcher seria o de transpor o debate internacional para a falsa arena de supostos iguais, atalho maquiavélico a relegar aspirações do desenvolvimento econômico a efêmero sonho de verão.
Nos artigos anteriores, de forma muito genérica, procurei apresentar as etapas principais das negociações econômicas internacionais com o objetivo de melhor compreender onde hoje estamos e para onde poderemos ir. Ver de forma clara através da névoa é o pressuposto indispensável para superarmos a ideologia do neoliberalismo e o sentimento de falência moral em que nos encontramos.
Muito além do pretensioso axioma “não há alternativa“ com que nos bombardeou Margareth Tatcher, há diversas e muito mais saudáveis alternativas para a humanidade. Depois de anos da conversa predatória do neoliberalismo, onde nos encontramos? Num mundo extremamente perigoso, onde muros e barreiras se levantam contra a invasão dos famélicos e dos destituídos. No Mediterrâneo, barcos de imigrantes são impedidos de encontrar bom porto. Nos Estados Unidos da América, um muro se pretendeu erigir entre a fronteira mexicana e americana. Finalmente, chegamos ao absurdo de separar, como Trump permitiu, pais e mães de seus filhos de colo e enjaular uns e expulsar outros. Tudo em defesa de uma sociedade global iníqua e antropofágica. Em artigo anterior abordei o monopólio das patentes de fármacos e similares, importante para desnudar muito da hipocrisia em que fomos embalados. Mas, é preciso ir além.
Há outras, muitas outras, artimanhas na OMC (Organização Mundial do Comércio) disfarçadas de liberalização comercial a interferir negativamente no desenvolvimento econômico dos países atrasados. O projeto neoliberal, muito antes de ser uma teoria econômica, é uma ideologia do capitalismo transnacional frequentemente ameaçador do Estado e de suas políticas autônomas. Quarenta anos de neoliberalismo terão certamente enriquecido uma pequena amostragem dos mega-blocos do sistema financeiro mundial, mas terão igualmente contribuído para as imensas disparidades sociais mundo afora com consequências óbvias para o Estado Democrático de Direito e para o bem-estar social.
Recentemente, até países ricos passaram a sentir os efeitos negativos sobre a classe média de uma globalização desequilibrada, como vemos nos Estados Unidos da América. Trump terá sido um dos tumores políticos gerados pela iniquidade do sistema econômico internacional. Quem não se lembra dos primeiros meses do governo Trump quando condenou os acordos de comércio subscritos por seu país, chamando-os de desequilibrados e negociados contra os interesses americanos?
O que separa Trump, um populista autoritário, de um estadista à altura dos problemas reais de nosso tempo é sua incapacidade de liderar um movimento internacional contra os princípios de uma ideologia neoliberal desgastada e optar por mitificar a “América Grande” e aprofundar os abismos entre países no início deste século XXI. Trump estimulou o movimento da extrema Direita no mundo e reforçou mecanismos anti-democráticos, a culminar com a insanidade de tentar perpetuar-se no poder, com o aprofundamento das cisões étnicas e sociais em seu país. E nesta fúria tresloucada terá adubado na sociedade americana sentimentos divisivos e odiosos como os da Guerra Civil naquele grande país. É a dinâmica que os Democratas terão que reverter a partir do mandato de Biden, pois os Republicanos são hoje um partido imobilizado pelo terror trumpista.
Biden em um de seus pronunciamentos recentes, sem o alarde megafônico de seu antecessor, mencionou estarem os Estados Unidos reavaliando compromissos internacionais (na OMC), como o Acordo de Compras governamentais e implicações para o desenvolvimento e a retomada da indústria americana. Biden reconhece o caráter predatório de regras da OMC, ao retirar dos países instrumentos clássicos de políticas nacionais.
O acordo de compras governamentais obriga a abertura de concorrências em que a indústria nacional deve concorrer em igualdade de condições a despeito do nível de desenvolvimento dos países envolvidos. Nós, no Brasil, estamos ávidos para aderir ao Acordo de compras governamentais e desta forma prosseguir em nossa marcha insensata em direção à decadência já notável da indústria nacional. O acordo de compras governamentais abre igualmente as portas para a obrigatoriedade de se aceitar que o eventual vencedor da concorrência internacional possa impor a transferência de pessoal técnico ou não de seu país para o país onde fará a obra ou serviço, desde a elaboração do projeto até a conclusão do contrato. O impacto desta generosidade sobre o nível do emprego de engenheiros e técnicos nacionais poderá adquirir relevância para nossas políticas migratória e trabalhista.
Tivéssemos nós uma centelha de inteligência ou de argúcia internacional estaríamos agora aliados em busca de revisão dos acordos leoninos da OMC. E poderíamos propor o lançamento de rodada negociadora para eliminar “os acordos relacionados ao comércio com efeitos adversos para o desenvolvimento“. Mas, com nossa atual política econômica, uma eventual proposta nesse sentido seria anátema. Primeiro, seria necessário reinstituir os Ministérios da Indústria e Comércio e do Planejamento, com ministros mais afinados com a retomada do desenvolvimento industrial em nosso país.
Ao contrário, como macaquinhos de realejo, nos felicitamos pela conclusão do Acordo União Europeia-Mercosul ao qual reagimos durante vinte anos e Guedes estimulou a assinatura em dois meses. E disso se vangloriou, como se a Diplomacia brasileira dos vinte anos passados fosse composta por dinossauros pré-históricos. E para cúmulo, Guedes mandou para a televisão a propagar sua grande vitória o escorregadio Marcos Troyo, hoje na presidência do Banco dos Brics, onde perdeu a oportunidade de organizar um pacote financeiro para adquirir dos membros dos Brics (RúÍsia, China e India) vacinas contra a Peste. Mas, Troyo, tão habilidoso em aceitar acordos, deu uma de Conceição e se subiu ninguém sabe ninguém viu.
Fica aqui meu apelo aos partidos de oposição, ou não, no Congresso Nacional: deem uma boa olhada no Acordo Mercosul-União Européia, sobretudo nos capítulos sobre regras de propriedade intelectual, compras governamentais e solução de controvérsias. É um mergulho duplo escarpado em direção a uma piscina vazia.
Chego aqui a uma constatação melancólica. Enquanto são óbvios e frequentes os movimentos críticos contra o neoliberalismo e as políticas de austeridade fiscal, inclusive por parte de organizações internacionais insuspeitas como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Brasil insiste no desatino do estrangulamento do Estado, na volúpia das privatizações, na miserabilidade do investimento público, no genocídio econômico de sua população empobrecida e parece cantarolar o samba-triste de Thatcher do “não há alternativa“ com acompanhamento do “Posto Ipiranga” na caixinha de fósforos.
As reformas anunciadas como reestruturantes no Congresso poderão nos complicar mais a vida. A tributária fará de tudo, menos tornar o imposto de renda das pessoas ricas mais progressivo. A reforma administrativa pretende matar com garrote espanhol a dignidade do serviço púbico brasileiro, ultimamente tratado como Judas, malhado nos postes pelos postos Ipiranga. O exemplo do Ministério da Saúde é altamente ilustrativo de como remanejamentos de competências podem levar à incompetência geral. Cancelar concursos públicos é facilitar o nepotismo e a balbúrdia. Equiparar salários de servidores públicos em tempo integral e dedicação exclusiva com agentes privados é fingir esquecer bonificações e compensações diversas no setor privado a distorcer o salário real anual. Esticar o prazo de estabilidade por até dez anos é estimular o compadrio, sujeitar o funcionário à corrupção miúda e estimular cortes abusivos de funcionários na faixa de idade de 35 a 40 anos. Enfim, é destruir o trabalho de valorização do servidor público desde a criação do Dasp.
Da reforma política nem se fala. Nem mesmo da medida saneadora que nela deveria ser inscrita, obrigando futuros presidentes da República a terem lido, pelo menos uma vez, a “Formação Econômica do Brasil”, de Celso Furtado, e a Encíclica “Pacem in Terris“ de João XXIII. E duas vezes, no mínimo, a Constituição de 1988, sobre a qual deverão submeter-se a uma prova escrita, aplicada e corrigida pelo Supremo Tribunal Federal. Se forem mais de dois candidatos, a correção será feita pelas urnas eletrônicas do Tribunal Superior Eleitoral.
Até que melhores ventos aqui soprem, e, como hoje estão suspensos os desfiles de Escola de Samba, não deixe de ver passar na televisão o bloco “Assim Caminha a Humanidade“ onde a ala do Brasil saúda o distinto público e informa que desfilará de costas, na contramão do bom-senso. “Vai Passar”.
*Embaixador aposentado