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Como a extensão do teto da dívida dos EUA pode impactar o futuro do governo Biden?

A negociação de um novo valor para o limite da dívida mediada no Senado entre republicanos e democratas gerou fortes debates sobre o futuro do governo Biden e da economia dos EUA. A Sputnik Brasil entrevistou analista para entender melhor esse contexto

Por JORNAL DO BRASIL
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Publicado em 12/10/2021 às 09:35

Alterado em 12/10/2021 às 09:35

O presidente dos EUA, Joe Biden Foto: Reuters / Evelyn Hockstein

Na semana passada, o Senado dos EUA aprovou um acordo para elevar temporariamente o limite de dívida do governo de US$ 28,4 trilhões (R$ 156,24 trilhões) com o intuito de evitar o risco de um calote histórico neste mês de outubro, conforme noticiado.

Agora, o projeto segue para a Câmara dos Representates, que nesta terça (12) precisa aprová-lo antes que o presidente, Joe Biden, possa promulgá-lo.

A solução encontrada permite um aumento de US$ 480 bilhões (cerca de R$ 2,6 trilhões) que elevará o limite da dívida para US$ 28,9 trilhões (R$ 159 trilhões), no entanto, a medida é temporária, e segue válida até 3 de dezembro.

Caso o Congresso não aprove um novo financiamento até a data, Washington pode entrar em uma paralisação de atividades federais por falta de verba.

Para entender melhor como o governo Biden pretende gerenciar a questão, a Sputnik Brasil entrevistou Pedro Costa Júnior, cientista político, professor de Relações Internacionais da Faculdade de Campinas e autor do livro "Colapso ou Mito do Colapso?".

Assim como outros países, os EUA gastam mais do que arrecadam e precisam pegar dinheiro emprestado por meio da emissão de títulos públicos. A renegociação do teto da dívida é comum no país e é realizada periodicamente. Contudo, o tema vem gerando debates mais acalorados durante o governo Biden.

Costa Júnior elucida que o atual mandatário norte-americano quer ser visto como "o presidente das grandes transformações" e cita o Build Back Better (Reconstruir Melhor, na tradução em inglês), plano elaborado por Biden, como um plano que remete ao New Deal, proposta criada pelo ex-presidente Franklin Roosevelt para reconstruir a economia dos EUA após a crise de 1929.

"Esse planejamento também é chamado de Green New Deal, o qual já injetou um montante trilionário, que, desde que Donald Trump [ex-presidente dos EUA] começou a reinvestir, totalizou cerca de US$ 7 trilhões [US$ 38,5 trilhões], um valor maior que o PIB do Brasil."

Segundo o professor, além de ser um projeto para recuperação econômica, o plano também visa mais duas questões: a criação de uma "energia limpa e verde" para diminuir os impactos no meio ambiente e no clima, e, ao mesmo tempo, mira no âmbito social.

"Biden tem um inimigo muito claro nas eleições legislativas e está com o Congresso rachado. Ele tem 50% no Senado e uma ligeira vantagem na Câmara dos Representantes, e se perder a maioria, não governará nos próximos dois anos […], então o presidente foca nesse plano social para exatamente reconquistar um eleitorado que tradicionalmente era democrata, mas que foi ganhado pelo trumpismo", explicou o professor.

Costa Júnior salienta que Trump "pode ter perdido as eleições, porém, continua vivo", sendo o segundo presidente mais votado da história do país, e segue "fazendo campanha, comícios, viajando, lançando site e um canal de televisão só dele".

Raízes do problema

De acordo com Biden, a atual situação econômica do país é resultado da política "desastrosa" de Trump. Indagado se o ponto de vista do presidente está certo ou se o problema tem raízes anteriores, o professor afirma que fica com a segunda opção.

"É uma questão bem mais prolongada, sem dúvida. A reestruturação da economia dos EUA começa, pelo menos, na saída norte-americana do Acordo de Bretton Woods no início da década de 1970 […]. Se pegarmos a curva de acentuamento das desigualdades no país, ela começa justamente entre o final da década de 1970 e começo de 1980 para cá, o que mostra uma curva de longa duração que inclusive foi aprofundada no governo de Bill Clinton e Barack Obama, ambos governos democratas."

Para o professor, "o governo Clinton foi a grande expressão democrata dessa política econômica que hoje Biden acusa Trump [de ter executado]", e ao mesmo tempo, também foi nesse período que "os democratas começaram a perder o eleitorado como sindicalistas, trabalhadores de classe média, que tradicionalmente votavam neles e foram parar no 'bolso' do Trump. Além disso, Barack Obama não fez nada para reverter esse quadro".

"Por uma questão política Biden quer jogar tudo na conta do Trump, mas o ex-presidente só continuou um plano que começou durante o governo de Ronald Reagan [no final dos anos 1960], com os democratas aprofundando com maestria as políticas de mercado livre que resultaram na expansão Euroasiática, sobretudo da China."

De acordo com o professor, "nos últimos 30, 40 anos a China se tornou uma nova 'fábrica' do novo 'cofre' do mundo, houve um deslocamento do capital produtivo do sistema para lá, enquanto os EUA ficaram cada vez mais reféns do capital financeiro".

Resistência republicana

Geralmente, os republicanos se pronunciam severamente contra qualquer medida para aumentar o teto da dívida, Costa Júnior explica que essa postura acontece por dois motivos: o primeiro é uma questão ideológica, baseada em uma atuação menor do Estado.

"Os republicanos, tradicionalmente, pregam um Estado menor e são contra a expansão da dívida, pois acreditam que o Estado deve gastar menos. Em segundo lugar, há uma questão política, pois eles sabem que daqui a um ano e meio haverá uma nova eleição que vai renovar o Congresso, Câmara dos Deputados e Senado, e eles precisam sair vitoriosos", explicou o especialista.

O professor ressalta, como citado anteriormente, que ter a maioria nas três Casas é importante, uma vez que "bloquearia todos os projetos de Biden para os próximos dois anos, e isso é fundamental para eles [republicanos] ganharem a próxima eleição executiva e voltarem para Casa Branca".

"Os republicanos realmente não acreditam que o aumento de gastos é benéfico, ao mesmo tempo, sabem que a verba para esse aumento vai ter que sair de algum lugar e o Biden tem declarado que sairia da taxação de impostos dos mais ricos. O lobby desse grupo é muito forte nos dois partidos, mas sobretudo, no lado republicano."

Se a postura republicana contra o aumento do teto da dívida poderia ser alterada até dezembro, Costa Júnior diz que "é difícil avaliar porque é preciso aguardar para ver como estará a popularidade do Biden, que ficou enfraquecida agora com a questão do Afeganistão, e tem que ver como vai ficar o contexto pandêmico também […]. Eles [republicanos] podem querer ao mesmo tempo estender um pouco o limite para desgastar a imagem do presidente".

Risco de inadimplência norte-americana

Em 2021 a dívida nacional norte-americana atingiu quase R$ 28 trilhões (R$ 154 trilhões) o que significa que, desde agosto de 2019, a dívida aumentou em quase 30%. Segundo o Escritório de Orçamento do Congresso (CBO, na sigla em inglês) os empréstimos atingiriam 107% do produto interno bruto (PIB) dos EUA até 2031.

Diante desse cenário, o professor é indagado sobre o verdadeiro risco de inadimplência para Washington. Costa Júnior diz "que o risco é muito dúbio", a partir do momento que o país estadunidense ainda detém o monopólio da moeda internacional.

"Como o dólar ainda é a moeda padrão, eles são os fiduciários do sistema […], ou seja, enquanto as principais transações correntes forem em dólar, teoricamente eles podem continuar a emitir dinheiro porque vão continuar a dever para eles mesmos, e a dívida que for para outros países é paga na própria moeda [dólar], então, eles não têm o risco da desvalorização cambial que outros países têm quando há dívida externa."

O professor destaca que o problema começa se, a partir de um determinado momento, o dólar não for mais a moeda padrão, entretanto, "esse fato não está em um horizonte próximo".

Ameaça financeira para comunidade internacional

Segundo analistas, um possível calote dos EUA derrubaria todo o sistema financeiro global e causaria grave crise nos mercados.

Se tal fato seria uma ameaça para economia de toda a comunidade mundial, o professor diz que a questão, hoje, é mais política do que econômica, uma vez que o aumento da dívida já aconteceu em outros governos, contudo, as diretrizes adotadas por Biden promovem profundas mudanças que não foram executadas em momentos anteriores.

"Com essa nova reestruturação, Biden está rompendo paradigmas neoliberais estabelecidos na década de 1980 e que nunca foram alterados, pelo contrário, foram aprofundados por governos antecessores, seja pelo lado republicano ou democrata […]. Agora, essa quebra é um problema", explicou o professor.

Costa Júnior destaca que, ao mesmo tempo, há uma movimentação dos "meios de comunicação, do mainstream, da Academia, […] que está deixando todo mundo inquieto nesse sentindo, ele [Biden] está tocando em pontos delicado. A reação desse poder estabelecido é muito forte, então mais do que nos perguntarmos sobre essa reação, é por que ela está sendo tão intensa agora". (com agência Sputnik Brasil)

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