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Quem come quem?

miguel paiva/jb -
Charge
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A convivência de uma ideia com outra totalmente oposta não tem como finalidade o extermínio de todos que concordam com uma ideia pelos que defendem a outra. Essa polaridade tão comum a nós hoje é uma aberração, pelo menos do jeito que ela é vivida. Ultimamente, as redes sociais se incumbiram de agravar mais ainda essa luta sangrenta. Nos países europeus, habituados à democracia essa polarização é muito mais suave e natural- as pessoas não se agridem na rua como aqui.

Macaque in the trees
Charge (Foto: miguel paiva/jb)

Acho que o hábito democrático, da convivência com ideias e partidos diferentes é muito recente ou quase inexistente. Antes e imediatamente depois do golpe de 1964 é que os partidos começaram a assumir suas verdadeiras cores e ideologias. A esquerda se fragmentou como sempre e o Partido dos Trabalhadores surgiu como alternativa de fato para um novo modo de fazer política. O resto da esquerda ficou tentando manter a cabeça fora d'água e se esqueceu de tentar se unir. São tantas as nuances na institucionalização da sua ideologia que acabam se perdendo nos meandros do jogo político. A direita não tem os mesmos problemas. Existe até uma divisão, mas, a chamada direita neoliberal que parece comandar o nosso destino nos dias de hoje, essa não tem sutilezas nem meandros. A própria direita liberal, tradicional, conservadora ou não, tem um pouco mais de raciocínio, consegue ver alguma utilidade no estado e , por enquanto, me parece adepta do jogo democrático. Mas os pudores moralistas da esquerda são maiores.

O que acontece no Brasil é uma exacerbação disso tudo. Depois de 64 a direita sumiu nas sombras do fim da ditadura. Aliás, nem havia direito uma direita organizada, política. A vergonha e o pudor os mantinha escondidos. Havia os partidos de centro direita que saíram ilesos na chamada Anistia Geral e reuniram forças através do MDB, da extinta Arena, do PFL e do espírito udenista dos políticos mineiros. Se mantiveram do mesmo modo que tentavam manter Tancredo Neves vivo. Não deu certo. Conseguiram eleger os liberais que se achavam socialdemocratas do PSDB e dali pra frente foi só correr pro abraço dos trabalhadores com Lula na frente.

Era óbvio que essa falta de debate de ideias diferentes e de convivência pacífica entre as partes ajudou. O espírito golpista do político brasileiro permaneceu em retiro espiritual durante esses anos todos. A ascensão da direita radical no mundo junto com o projeto de controle das forças de produção pelas forças conservadores ocidentais, juntando bancos, grandes empresas e parte da imprensa deu gás às manobras que acabaram minando a experiência de governo popular. Por outro lado, a esquerda no poder se embaralhou nos próprios meandros. As alianças espúrias, os políticos oportunistas e a estrutura de corrupção armada há décadas acabaram afundando qualquer possibilidade de resistência. O chamado golpe branco, institucional derrubou o governo Dilma por motivos que hoje fazem parte da cartilha política para crianças.

Era tudo que a direita precisava para colocar sua raiva de fora. Primeiro um operário que vira presidente, depois uma mulher fora dos padrões machistas de beleza que assume o poder e quer ser chamada de presidenta. A elite brasileira não resistiu. Era demais. O grito no estádio do Corinthians na Copa e o subsequente impeachment deram o fôlego que as hordas raivosas precisavam. O UFC político começou, tendo de uma lado uma direita sem pudor pronta pra tudo para reconquistar seu lugar na pirâmide social e do outro uma esquerda atônita tendo que se defender antes de poder contra atacar. O golpe deu início a essa trajetória que só a História há de corrigir.

Mitos surgiram, heróis foram desfraldados em praça pública, líderes foram presos e as redes sociais viraram palco da mais perversa, covarde e suja disputa. Fake news são muito mais interessantes e destruidoras do que as verdadeiras. Quem tem pudor que fique em casa. O pior que podia acontecer aconteceu e hoje, apesar do desmascaramento que começa ainda temos que assistir mentiras sendo ditas como verdades, ofensas, acusações e defesas sem a menor preocupação de convencerem. Vamos ver até que ponto o que resta da democracia brasileira consegue segurar esse abuso de poder que vem mandando nos fatos. Discutir ideias diferentes é uma boa, mas tem que valer para os dois lados e os dois lados tem que jogar conforme as regras. Como simpatizante da esquerda acho que essa lacuna pertence mais à direita. Não sou só eu que digo. A História ajuda e esse povo da direita não é muito simpatizante da História. Ela nunca é citada. Aliás, acho que nunca ouviram falar dela.