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O meu credo

Miguel Paiva -
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Macaque in the trees
(Foto: Miguel Paiva)

Vivemos reclamando da vida. Nós, classe média, média para superior. Nós que estudamos, somos brancos e vivemos em bairros supostamente bem atendidos pelos serviços públicos. Nós que trabalhamos, pelo menos quase todos, temos uma renda mensal razoável, também quase todos, vamos ao cinema, ao teatro e até comemos fora de vez em quando. Nós que a saúde é mais ou menos bem cuidada e o que não dá pra segurar o plano cobre. Por aí vamos, aos tropeços mas numa calçada regular, vivendo nossa excitante vida. Não entro nem nas questões filosóficas. Essas eu já deixei de lado. Não sei de onde vim, nem para onde vou e muito menos o porque dessa caminhada. Sou cético e feliz na minha descrença. Mas, já que estou aqui tento usar um pouco a cabeça que tenho em cima do pescoço para estimular os sentimentos. Posso dizer até que sou relativamente feliz. Tenho mulher, filhos e roupa lavada. Quando me falta tenho sempre alguém que me ajuda.

Onde eu quero chegar com essa reflexão baratíssima de calçadão aos domingos? Quero concluir que se acreditasse em Deus estaria o tempo todo agradecendo. Mas, pensando bem essa situação não duraria muito. Por que eu fui o escolhido para levar essa vida mais ou menos enquanto tem outros que levam a vida mais e muitos outros a vida menos?

A resposta está muito mais para Marx do que para deus.

Faça uma pausa ai agora e pense um pouco nos outros. Não como atitude cristã, mas como um gesto desesperado de consciência social. Pense um pouco nos que não tem. Não precisa ir longe. Você está cercado deles. Do seu porteiro, à sua empregada, do vendedor ambulante da esquina, ao menino que faz malabarismo no sinal. Do motorista de Uber ao motorista do ônibus. Do funcionário da operadora que vem na sua casa ao gari que limpa a sua rua. E olha que estou citando somente quem trabalha, que tem emprego e carteira assinada.

Olhem as últimas estatísticas para ter noção de quem está desempregado, de quem busca fazer um bico na rua para sobreviver. Para acordar e ter o que comer e dar de comer aos filhos. Para poder levar o filho ao médico e ser atendido, mesmo no SUS. Para poder pegar um transporte que não deixe ele esperando por muito tempo e tenha condições mínimas de uso. Para que possa entrar num mercado e conseguir comprar o que comer e não adoecer, mas se adoecer tenha como se medicar com remédios de verdade e não falsificados comprados na farmácia popular com o dinheiro do seu sustento. Para que possa viver numa casa que não desabe, que seja sua numa área sem risco e sem cobrança das milícias para uma inexistente segurança. Para que possa se divertir, ir onde gosta, conversar com os amigos, assistir a um show de música ou até mesmo uma sessão de cinema ou teatro.

Parece difícil e é, mas é o básico. É justamente o que um ser humano precisa para tentar ser feliz.

Cada um sabe onde lhe doem os calos. A dor e o sofrimento não tem categoria nem hierarquia, muito menos classe social. Mas convenhamos: com um mínimo de condição de vida fica menos difícil a dura batalha. Partir de um estágio básico de sobrevivência ou de desenvolvimento social é o mínimo que se deve exigir. Na descrença generalizada só me resta acreditar que isso é possível.

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