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Os tempos que o tempo tem

Ben-White / Unsplash -
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Um dos meus autores favoritos é Peter Mayle. Mayle não é considerado um grande escritor, sua literatura não é séria, não inova na linguagem, não nos leva a grandes reflexões ou revelações. A maioria dos seus escritos, independentemente da trama, tem alguns personagens indispensáveis: a região da Provence, no sul da França, vinhos, queijos, sol, patés, melões dulcíssimos, azeitonas, alho, pão, farta comida e o perfume do tomilho, do alecrim e da lavanda. Uma boa fuga das pressões do dia a dia.

Mayle (falecido em 2018) era um inglês de carteirinha, que após muitos anos vivendo uma vida de executivo no mercado publicitário, decidiu que iria se aposentar, mudar-se para o interior da França, em busca do sol, de uma vida mais pacata e abraçar uma nova profissão: tornar-se escritor. Seu primeiro livro dessa safra foi "Um Ano na Provence", um relato autobiográfico que narra as aventuras e desventuras de seu primeiro ano morando na cidadezinha de Menèrbes. O livro foi um estrondoso best-seller.

Mas o que torna Um Ano na Provence tão intrigante? Eu arriscaria dizer que é o tempo. Ou melhor, os tempos. Para o inglês Peter Mayle, acostumado à rigidez da “pontualidade britânica”, lidar com uma outra cultura cuja relação com o tempo é mais fluida e orgânica significa um grande choque. Boa parte do livro narra seus conflitos com encanadores, carpinteiros, pedreiros, funcionários públicos e vizinhos, que operam numa outra lógica de tempo. Mayle operava no que os antropólogos chamam de tempo monocrônico (tangível, impessoal, linear), ao passo que os provençais operavam no tempo policrônico (cíclico, relacional, flexível). Ambos apresentam vantagens e desvantagens, a depender do contexto.

No caso de Mayle, o tempo rígido da objetividade anglo-saxã, esbarrava a todo momento com a subjetividade do tempo dos aldeões da França rural, muito mais conectados com os ritmos das estações, do que com os ponteiros do relógio de pulso. O tempo de Mayle estava fora de contexto cultural. Ele ficava enlouquecido com essa noção de tempo diferente, até que compreendeu que loucura mesmo era o desejo de que a cultura que escolheu para viver dias mais calmos e relaxados se adequasse ao relógio cultural britânico. O que os antropólogos nos mostram é que nós internalizamos esse relógio cultural e passamos a achar que ele é “natural”.

A cultura ocidental acredita piamente que o tempo é linear e quantificável e acredita, é claro, que essa é a única maneira de se relacionar com tempo. As metáforas que utilizamos são reveladoras a respeito de nossas fantasias: vemos o tempo como dinheiro, por isso é possível "perder" tempo, "desperdiçar" tempo, "investir" tempo, "economizar" tempo, usar o tempo "produtivamente". Vemos o tempo como um movimento linear em direção ao futuro, por isso o tempo "voa", o tempo "chega", o tempo "não para". Vemos o tempo como um recurso, por isso é importante "gerenciar" o tempo, "controlar" o tempo, "valorizar" o tempo. Essas metáforas revelam não apenas nossas fantasias de controle sobre o tempo, revelam também como nossas fantasias nos controlam.

Acontece que o tempo é simultaneamente uma experiência cultural, uma experiência individual e uma experiência arquetípica. Muitas culturas não precisam sequer de um vocábulo para designar o tempo, dada a sua relação orgânica com ele. Em quase todas as culturas tradicionais o tempo é uma divindade, mas a racionalidade ocidental acredita que já superou essa tempo arquetípico, embora continue datando seus eventos históricos com o marco do antes e depois de Cristo. O tempo tem muitos tempos.

O antropólogo Edward T. Hall (The Dance of Time) inventariou nove sistemas de tempo: o tempo físico, o tempo do sagrado, o tempo do profano, o micro-tempo, o tempo sincrônico, o tempo pessoal, o tempo biológico, o tempo físico e o tempo metafísico. Para representar esses nove tempos que o tempo tem, Hall valeu-se de uma mandala; segundo ele, “mandalas são particularmente úteis quando estamos lidando com relações paradoxais”. Ele chamou sua mandala de mapa do tempo.

Quando uma pessoa inicia uma análise, muitas vezes esse é um movimento que marca a busca de uma nova relação com o seu mapa do tempo. O início de uma análise muitas vezes é carregado pela percepção de que algo na relação do indivíduo com o tempo precisa ser revisto. É quando o tempo do relógio entra em desacordo com o tempo da alma. Por que estou sempre vivendo pelo ritmo do outro? Qual o ritmo de vida eu gostaria de experimentar? Por que a ansiedade me assombra? Por que sempre que me aproximo do ritmo que parece mais adequado para mim me sinto inseguro e com medo? Essas são algumas reflexões que emergem. Há casos em que uma pessoa começa a estudar um idioma que sempre desejou, mas que “não servia pra nada”; outros que começam a desenvolver um hobby artesanal que “não é produtivo” mas traz paz e satisfação, “arruma tempo” para se dedicar a novos interesses, inclusive profissionais, que resultam em uma relação mais justa com suas necessidades e valores de vida no momento. A alma tem seu próprio tempo.

A análise é, em si, uma relação simbólica com os muitos tempos. Há o tempo da sessão, o dia e a hora, que delimitam um tempo dedicado para um mergulho sobre si; há a possibilidade de o passado estar muito vivo e atuante no presente; há o tempo do sonho, que não respeita as leis da física nem da lógica formal; há o tempo do silêncio, quando ainda não temos respostas, o tempo que nos convoca a reflexão (re-flexão: um passo atrás para melhor enxergar); há o tempo variável para cada pessoa, da tomada de consciência de suas questões; O tempo de desejar um novo futuro, há o tempo do começo de algumas transformações, quando é comum ouvir: “você está tão diferente!”.

É curioso pensar que quando nos aproximamos de nossa personalidade mais autêntica e verdadeira pareçamos, aos olhos externos, que estamos nos tornando “diferentes”. Quanto mais nos aproximamos do “nosso tempo” e de nós mesmos, mais nos diferenciamos.

Psicólogo e Psicoterapeuta de orientação Junguiana