ASSINE
search button

Dólar e Auxílio Emergencial pressionam a alta dos alimentos

... -
...
Compartilhar

A alta de 0,24% na inflação de agosto, medida pelo IPCA (que mede o consumo das famílias até 40 salários mínimos (R$ 41.800), puxada pela aceleração de 0,78% nos preços dos alimentos e bebidas (contra 0,01% em julho), revelada nesta 4ª feira pelo IBGE, está ligada a dois fenômenos. 1 - a alta de 33% do dólar este ano impulsionou exportações recordes de carnes bovinas, soja e milho para a China, puxando os preços em reais; 2 - o Brasil profundo, cujo comportamento econômico e social era desconhecido da equipe de Paulo Guedes até a pandemia da Covid-19, ganhou maior poder de compra com o Auxílio Emergencial de R$ 600 pagos a 66 milhões de brasileiros e aumentou o consumo de alimentos básicos (arroz, feijão, óleo, farinha e carne). Sobretudo os não perecíveis, como arroz, feijão, óleo e farinha.

Em texto publicado em 26 de agosto, as economistas Priscila Trigo e Myriã Bast, do Departamento de Estudos Econômicos do Bradesco, fazem análise perfeita das causas externas e internas da escalada dos preços de alimentos. E a conclusão, que antecipa o resultado de agosto do IBGE, é que “ a inflação de alimentos seguirá pressionada no curto prazo, assim como observado na maioria dos países”. O Bradesco projeta alta de 8,5% para os alimentos este ano (6,37% em 2019). Mesmo assim, projeta IPCA de 1,9% para este ano.

Como a alta acumulada de alimentos e bebidas foi de 4,91% até agosto, para a previsão de 8,5% ser atingida, resta uma alta de 3,42% nos quatro últimos meses deste ano. No ano passado, setembro teve queda de 0,43% nos preços de Alimentos e Bebidas e outubro ficou praticamente estável, em 0,05%. O problema foi a pressão na carne bovina (quando a China entrou no mercado para compensar, com a importação de carne de boi, depois que a peste suína africana provocou perda dde 40% do rebanho suíno do país, então responsável pelo suprimento de 49% da proteína animal chinesa). Só nos dois últimos meses do ano os preços da carne subiram 27,61%.

Muitos rubro-negros atribuíram a escalada aos sucessivos churrascos comemorativos das vitórias do Flamengo no Brasileirão e na Libertadores (de fato, a alcatra, carne de 1ª, e o acém, carne de 2ª, muito usadas em churrasco dispararam). Mas a causa foi a combinação de uma alta do dólar /desvalorização do real, com a maior demanda da China. Com a demanda das festas e encontros de fim do ano (a covid-19 não estava ainda no noticiário, nem na China), cervejas, águas e refrigerantes também tiveram alta de preços. A alta agora podia ser maior se o Flamengo estivesse melhor na tabela e os jogos tivessem público, o que ficou impossível na pandemia da covid-19.

Pressão atual junta a fome com a vontade de comer

No caso atual, enquanto os principais países do mundo, ainda às voltas com a pandemia e sem uma vacina à vista para devolver a confiança dos consumidores, seguem retraídos na demanda, a China, que foi a primeira a lidar com o vírus que escapou de laboratório em Wuhan (onde houve confinamento total em janeiro e fevereiro), retomou as atividades normais no 2º trimestre e vem pressionando o mercado de alimentos.

Nas bolsas internacionais de commodities, até que os preços (cotados em dólar) não sobem muito. O problema é que os preços são cotados em dólar e os produtores/exportadores atualizam os preços domésticos pela variação do dólar que subiu mais de 33% este ano. As exportações de soja bateram recordes em agosto, assim como as de milho (aproveitando a quebra de safra dos Estados Unidos). A dupla é a base das rações animais para aves e suínos (que poderiam concorrer com a carne bovina no Brasil). Há pressão altista na carne, pois depois de baterem recordes em agosto, as vendas para a China foram novamente recordes na primeira semana de setembro.

Em agosto, as maiores altas dos alimentos no IPCA, segundo o IBGE foram do tomate (12,98%), do leite longa vida (4,84%), das frutas (3,37%) e das carnes (3,33%). O óleo de soja subiu 9,48% e do arroz 3,08%, que acumula alta de 19,25% no ano. De outra parte, caíram os preços da cebola (-17,18%), do alho (-14,16%), da batata-inglesa (-12,40%) e do feijão-carioca (-5,85%). No ano, o grupo de cereais, leguminosas e oleoaginosas (que inclui arroz, feijão, soja, trigo e milho) houve alta acumulada de 18,87%, bem acima dos 4,91% da Alimentação e Bebidas e dos 0,70% do IPCA.

Os tubérculos, féculas e massas subiram 20,77%, influenciados pela alta do trigo importado. A alta do câmbio provocou alta de 11,84% nos preços dos óleos (de soja, milho, girassol, canola e caroço de algodão). Embora com pressão recente de alta, as carnes bovinas registram queda de 1,89% na média dos preços nacionais no acumulado do ano. Mas seria bom que o governo esclarecesse com os donos de supermercados por que há tanta disparidade de aumentos nas carnes: enquanto elas caíram 13,24% no Rio de Janeiro este ano, houve alta acumulada de 10,61% em Salvador. Em São Paulo, o preço caiu 3,57%, mas em Campo Grande (MS), um dos estados que mais produzem carne, os preços subiram 5,10% no acumulado até agosto.

O caso do aumento do aumento do consumo de arroz, cujos preços dobraram este ano, levando o governo a zerar as alíquotas de importação do produto, assim como as do trigo, feijão, milho e soja, na tentativa de esfriar a especulação, tem muita relação com o pagamento do Auxílio Emergencial. O Depec Bradesco estima que uma das mudanças de hábitos na pandemia foi o aumento do consumo de alimentos pelas famílias. Isto porque “no Brasil, diferentemente de outras crises econômicas, a distribuição do auxílio emergencial elevou a massa de salários na economia”.

As duas economistas afirmam que “demanda doméstica de alimentos tem sido sustentada por programas emergenciais de emprego e renda, mesmo com a queda do PIB”. Estimam que “a massa de rendimentos somada às transferências tenha crescido cerca de 15% no 2º trimestre, comparado ao mesmo período de 2019”. Elas decompuseram a massa salarial em setembro deste ano comparando a setembro de 2019. No ano passado, foram pagos R$ 629 bilhões em rendimentos de salários e mais R$ 211 bilhões em programas de transferência de renda (Bolsa Família, aposentadoria, seguro desemprego, Abono e Benefício de Prestação Continuada, entre outros), somando R$ 840 bilhões. Este ano, elas estimam que serão pagos em setembro (salários e benefícios referentes a agosto, antes da redução do valor do Auxílio Emergencial dos R$ 600 para R$ 300) R$ 967 bilhões (R$ 624 bilhões de salários, R$ 216 de benefícios e R$ 137 bilhões do AE), com aumento de 15,12% em 12 meses.

Para elas, “a distribuição do auxílio mais do que compensou a queda da renda proveniente do trabalho, diante do fechamento de vagas no mercado formal e informal. Com a extensão já anunciada dos programas, a massa deve se manter em elevado patamar no 3º trimestre. Com isso, diferentemente de outras crises, a renda das famílias, de forma geral, foi preservada”, o que "beneficiou alguns setores, como alimentos”.

As duas observaram “consumo crescente de produtos básicos como arroz, feijão, derivados de trigo (massas, pães e bolachas), leite [cuja alta estimada para este ano é de 21%], entre outros. Já o consumo de carnes recuou, explicado pelo fechamento de bares, restaurantes e escolas. Ademais, com a reabertura do setor de serviços, mesmo que parcial, a demanda de carnes deve retomar gradualmente. A continuidade do auxílio emergencial até o final deste ano deve sustentar o consumo doméstico de alimentos”, destacam.

Renda aumenta no setor agrícola

Como em economia há sempre o outro lado da moeda, se a pressão altista dos alimentos comprime os orçamentos dos 85% dos brasileiros nas cidades, o câmbio depreciado mais do que compensou a queda de preços internacionais das commodities agrícolas, garantindo boa rentabilidade ao setor, observam as economistas do Depec Bradesco. “O câmbio depreciado e a forte demanda externa têm atraído até mesmo o produtor de culturas sem tradição de exportação, como arroz. A demanda externa seguirá firme nos próximos meses”, assinalam, destacando que “no caso de carnes, as vendas seguirão positivas, reflexo da reduzida oferta de proteína animal no mundo”.

Pressão continua nos preços

“Com consumo elevado, o crescimento da oferta não deve ser suficiente para redução dos preços internos no curto prazo. A produção de soja, já colhida, se confirmou recorde, entretanto as exportações foram tão expressivas que a disponibilidade doméstica ficará restrita até a entrada da próxima safra (fevereiro de 2021). A produção de milho será maior, mas os estoques finais também seguirão em patamar reduzido. As expectativas apontam elevação importante da produção de café, açúcar e trigo. Para café, estamos em ano de bienalidade positiva; para açúcar, o mix da produção está mais açucareira, gerando recorde de produção; no caso do trigo, o aumento da produção deve levar a uma queda das importações, mas elas continuarão representando a maior parte do consumo interno”, estimam.

“Em carnes, há expectativa de aumento de abates de frangos e suínos, em grande parte destinada ao mercado externo. Já o abate de bovinos seguirá restrito. O ciclo pecuário está “apertado” após abate de matrizes em anos anteriores, gerando falta de boi “maduro” para abate em 2020. Dessa forma, não esperamos alívio significativo dos preços de alimentos no mercado doméstico nos próximos meses”, dizem Priscila Trigo e Myriã Bast,

O setor agrícola segue cada vez mais dependente do clima, um dos principais graus de incerteza para o retorno do produtor. De qualquer forma, eles veem a escalada de preços (e rentabilidade) este ano, a perspectiva de aumento das safras no ano que bem, com baixa de preços: “com a rentabilidade recorde em boa parte das safras neste ano, há expectativa de aumento relevante da oferta em 2021, com consequente efeito nos preços. A depreciação cambial e a forte demanda externa, assim como a resiliência da demanda interna, garantiram bons ganhos para o agricultor neste ano”.

Elas citam que “o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento estima alta da renda agropecuária de 10% em 2020. De fato, já vimos aumento dos investimentos para produtividade, como expansão das vendas de máquinas agrícolas e intensificação dos tratos para a próxima safra. Assim, a entrada das safras em 2021 pode ser um momento de importante redução de preços domésticos de alimentos”. Que assim seja, amém.