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Até onde vidas negras importam para Kamala Harris?

JB -
Álvaro Caldas
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Vinda de uma família de ativistas e de lutadoras, a senadora californiana Kamala Harris, de 55 anos, de ascendência jamaicana e indiana, pode entrar para a história como a primeira mulher a ocupar a vice-presidência dos EUA. Ex-rival de Joe Biden, negra, de presença física exuberante, filha de imigrantes, sua escolha foi cercada de grande disputa e expectativa. Num momento de convulsões sociais, assassinatos de negros e carros incendiados nas ruas, sua eleição em novembro repõe em discussão a questão do futuro da luta antirracista nos EUA, o que interessa todos os movimentos negros espalhados por outros países.

Trata-se de uma questão de poder, de enfrentar ou não o poderio e a capacidade de sobrevivência do establishment branco, já chamado de complexo industrial militar. Terá Kamala apoio de Biden, de seu partido e energia suficiente para repetir as frases que disse em campanha, e afirmar perante os brancos dominantes que “eu não sou sua negra?” Esta é uma história marcada por massacres e episódios sangrentos, que voltaram a agitar o pais no desdobramento do assassinato de negro George Floyd, sufocado por um policial branco que espremeu seu pescoço com o joelho até matá-lo.

Assim como a questão do assédio sexual saiu das sombras e ganhou maior nitidez, com a prisão e execração pública de envolvidos, a questão racial evolui lentamente para um ponto de maior exposição e reconhecimento, à custa dos confrontos, das mortes e da brutalidade policial. O silêncio gera impunidade. Na longa e dura reação a esta prática socialmente aceita e naturalizada, integrante dos privilégios da branquitude, é possível identificar a voz e as digitais do escritor, dramaturgo e ensaísta James Baldwin (1924/1987).

Para ele, o sonho americano existe à custa do negro americano. Duplamente perseguido por ser negro e homossexual, Baldwin militou nos movimentos e produziu obra extensa. Deixou inacabado o manuscrito de um livro em que relata romanescamente o massacre dos três maiores líderes negros da década de 1960 nos EUA, seus companheiros de jornada: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. O cineasta jamaicano Raoul Peck transformou o manuscrito no excelente documentário Eu não sou seu preto, indicado ao Oscar em 2017.

É a confirmação do que está dito neste titulo que os ativistas ligados ao Black Lives Matter, (vidas negras importam) esperam da carismática senadora californiana, graduada em Economia e Ciência Politica. O discurso de Kamala é claro e incisivo na questão racial. “Não há vacina para o racismo, nós temos que fazer o trabalho”, disse ela na Convenção. Esta foi a tônica de sua campanha. Criada no bairro negro de Berkeley junto com a irmã Maya, nomes de deusas hindus escolhidos pela mãe, a indiana Gopalan Harris, uma pesquisadora de câncer de mama que saiu de Nova Deli para Berkeley, EUA. O pai, Donald Harris, jamaicano, tornou-se professor em Stanford.

Muito de seu ativismo é herança da militância da mãe, uma mulher orgulhosa que repetia para as filhas: nunca deixem que as pessoas digam quem são vocês. Cabe a vocês mesmas dizerem para os outros o que são e o que pensam. É o que Kamala fez durante a campanha. Enfatizou que o sofrimento e as grandes perdas causadas pela pandemia de coronavírus atingiram sobretudo negros, latinos e indígenas. Que isso não decorre de uma coincidência, é efeito do racismo estrutural da sociedade. O vírus não tem olhos e ainda assim ele sabe exatamente como nos vemos e tratamos uns aos outros.

Em sua carreira como Procuradora da Califórnia, Kamala demonstrou ambição, pragmatismo e flexibilidade ideológica. Segunda mulher negra eleita para o Senado, seu nome ganhou projeção nacional e ela disputou a indicação pelo partido com Joe Biden, 78 anos, que, se eleito será o politico mais velho a chegar a Casa Branca. Cumpriria um mandato de transição, deixando as portas abertas para essa mulher com o olhar matizado por sua formação e origem, dirigido a uma parte da América sempre desprezada.

Um número recorde de mulheres negras concorre a uma vaga no Congresso na eleição de novembro. São 122 candidatas que almejam chegar a Washington, número que vem crescendo desde 2012, quando 48 negras concorreram. A estudante Joyce Elliott é uma delas. Eleita, será a primeira congressista negra do Arkansas. A efervescência criada pelas manifestações de protestos nas ruas cresceu nesta terça-feira, 25. Duas pessoas foram mortas durante uma noite de caos em Kenosha, onde outro negro, Jacob Blake, foi baleado pelas costas por um policial branco.

Kamala Harris tem se mostrado uma politica que não teme o combate direto. Uma mulher que enfrentou discriminações e superou obstáculos para chegar ao posto de liderança que ocupa. Assim como no Brasil, o sistema de desigualdade racial e desigualdade econômica foi naturalizado e é tecnicamente construído a partir da atuação do judiciário, aponta o filósofo e professor Silvio Luiz de Almeida, um dos principais pensadores brasileiros sobre a questão racial. Fenômeno que não produz apenas efeitos políticos e sociais, mas atua também no imaginário das pessoas. Para não ser seu negro ou sua negra, o combate contra o racismo precisa sair das trevas. 

Jornalista e escritor