Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Os primeiros 100 anos de dois brasileiros imortais

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Publicado em 05/05/2022 às 15:00

Alterado em 05/05/2022 às 17:34

Álvaro Caldas JB

Mineiros os dois, um de São João del Rei e o outro de Montes Claros. Passaram uma grande parte de seus setenta anos vividos no planeta em solo carioca, andando pelas mesmas ruas, sem se cruzarem. Um se foi com 70, Otto, e o outro se despediu com 74, Darcy, novos para os padrões atuais. Foram se esbarrar agora na celebração de seus centenários lá onde se encontram, comemorados os cem anos aqui também na terra por nós brasileiros, seus eternos devedores que somos.

Não há registro de que tenham apertado as mãos na entrada da Academia Brasileira de Letras, junto ao busto de Machado de Assis, na Cidade. A eleição de Darcy Ribeiro deu-se dois meses antes da morte de Otto Lara Resende. Nem de que tenham tomado um uísque no salão enfumaçado do Antonio´s, no Leblon, tendo como vizinhos de mesas Vinicius, Rubem e Paulinho, entre outros. As turmas não eram as mesmas, mas poderiam ter se cruzado em variadas jornadas políticas ou culturais.

Segundo um prezado jornalista mineiro amigo de ambos, minha fonte, há um consta de que não se encontraram por um triz na cobertura do cronista Rubem Braga, em Ipanema, numa noite de afagos alcoólicos e literários. Darcy fora convidado para contar umas histórias sobre literatura e cinema cubanos, recém chegado de uma visita à ilha. Mas o senador atrasou e o escritor teve que sair mais cedo, apressado. Perdeu o prazer da conversa e da degustação de um dos puros cubanos, levados pelo visitante.

Darcy foi um intelectual brilhante, engajado e internacionalista. Foi ministro, senador, indigenista, escritor, inventor de universidades, criador dos revolucionários Cieps junto com o governador Leonel Brizola. Dotado de muitos talentos, não escondia o prazer com que se dedicava também a namorar e a fazer travessuras. Enfrentou a ditadura de 1964 em vários momentos, foi destituído, cassado e exilado.

Seu centenário, aqui antecipado pelo colunista, será comemorado dia 26 de outubro, seu nascimento, com o relançamento de livros, homenagens e um seminário internacional: Intelectualidade e pensamento crítico latinoamericano. Do signo de Escorpião, Darcy usou ao longo da vida muitas peles. Na de etnólogo indigenista, passou dez anos nas aldeias do Pantanal e da Amazônia. Como exilado em diversos países, tornou-se professor de antropologia, reformador de universidades e romancista, Suas causas foram a salvação dos índios, educação popular, a universidade necessária, o desenvolvimento nacional, a democracia e a liberdade. De tirar o chapéu, diante da mediocridade dos tempos atuais.

Jornalista, escritor e inventor de frases, Otto não entrou em conflitos com a ditadura. Ralou muito desde que chegou ao Rio, em 1946, com 23 anos. Até seu ingresso na revista Manchete, em 1955, passou pela redação de cinco jornais: Diário de notícias, O Globo, Diário Carioca, Correio da manhã e Última hora. Fazia de tudo. Ao longo da carreira, lançou um romance, O braço direito (1963), e quatro livros de contos: O lado humano (1952), Boca do inferno (1957), O Retrato na gaveta (1962) e As pompas do mundo (1975).

Capaz de enredar o leitor, puxando-o para dentro do texto, seu reconhecimento e consagração como escritor estão chegando agora, um pouco tardiamente, no centenário. O conjunto de sua obra literária permanecerá. A mim, então estudante de Jornalismo, impactou a leitura da página de um dos contos d`O Retrato na Gaveta. Nela, um advogado anda apressado por uma rua do centro comercial, quando é surpreendido por uma ventania. De repente seu equilíbrio balança, sua gravata esvoaça, quase se solta do colarinho e sai voando como se fosse um pássaro. Nunca mais esqueci esta cena nem do nome de Otto Lara Resende.

Dizem que encantava as pessoas. Seu bom humor era inconfundível, quase sempre meio gaiato. Não tive o prazer de sua convivência, mas convivi com amigos que frequentavam sua casa, o premiado jornalista mineiro Ricardo Gontijo, um deles. Irritou-se com as repetidas brincadeiras de Nelson Rodrigues, que incorporou seu nome ao título de peça recém lançada Bonitinha mas ordinária. Otto recusou-se a assisti-la. E renegou a autoria de uma de suas pseudo-frases mais famosas, “O mineiro só é solidário no câncer”, atribuída a ele por Nelson.

Com Darci Ribeiro andei em algumas aventuras. Fui fá de suas idéias e de seu estilo desde cedo. Em 1986, convidado por José Trajano, entre uma redação e outra, integrei sua assessoria de imprensa, candidato a governador do Estado pelo PDT de Brizola. Do outro lado, Moreira Franco, do MDB. O trunfo de Darcy eram os Cieps, alguns inaugurados durante a campanha. Um barato aqueles atos, apinhados de crianças.

Fizemos reuniões em seu apartamento em Copacabana e viajamos muitas vezes juntos. Sempre um homem lúcido e despojado. Ao contrário de Brizola, não era um orador de comícios. Numa conversa de auditório ou num debate, imbatível. Tinha charme, cultura uma exposição clara e sabia de muita coisa. Com a união de todos os poderosos para derrotar Brizola, a TV Globo à frente, o Gato de angorá venceu a eleição.

*Jornalista e escritor

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