Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

No IMS, os abismos de Clarice e a consagração de Carolina

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Publicado em 02/12/2021 às 13:45

Alterado em 02/12/2021 às 13:45

Álvaro Caldas JB

Diários e fragmentos de manuscritos, fotografias, desenhos, pinturas, cartas, discos, letras de canções, recortes de jornais e revistas e objetos pessoais cobrem as paredes das quatro galerias ocupadas pelas exposições de Clarice e Carolina no Instituto Moreira Salles de São Paulo. De um lado e de outro, obras visuais e textos de outros artistas estabelecem uma surpreendente conexão com as criações das duas escritoras.

Ao entrar no instigante universo de Clarice, o visitante percorre os corredores de um verdadeiro labirinto. Como se estivesse lidando com o mistério em estado puro, seguindo os passos da autora “atrás do que está atrás do pensamento”. Ao se deparar com o mundo em preto e branco de Carolina, ele dá de cara com o mito de uma mulher negra ativa, participante de movimentos sociais e raciais em sua comunidade. Imagens de uma autora que considerava escrever um direito seu.

Pelo extraordinário e contundente recorte de suas obras, as duas mulheres, uma ucraniana-brasileira, outra mineira e negra, podem ser contempladas como duas grandes artistas que souberam expressar em toda a complexidade as incertezas, misérias e angústias de seu tempo. E o fizeram, sobretudo, através da literatura, porque conforme escreveu uma delas, “tudo só existe porque existe a escrita”. É o que parecem dizer em uníssono as duas escritoras, erguendo a voz num tom mais alto.

Na primeira vez em que se encontraram, Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus dão a entender que se conhecem há muitos e muitos anos. A conversa é franca, entremeada de pausas e de olhares indagativos. Fumam com prazer e soltam nuvens de fumaça enquanto conversam. Carolina, um pouco mais velha, nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em 1914. Clarice é de 1920, veio da Ucrânia, de uma família judia que emigrou para fugir da guerra civil e do comunismo.

Por coincidência, morreram no mesmo ano, 1977, e tiveram o auge de suas atividades em meados do século passado. Enfrentaram a censura e a violência da ditadura que se instalou com o golpe de 1964. Com a coragem que tiveram para viver e o talento de sua arte, oferecem aos visitantes no IMS múltiplas imagens de emoção, de prazer, de incertezas, sofrimento e de esperanças, neste momento em que a cultura do país está sendo destruída por um governo de índole e tintas fascistas. Cada uma ocupa duas galerias em dois andares. Podem ser vistas até o final de fevereiro de 1922.

Constelação Clarice tem curadoria do poeta Eucanaã Ferraz e da escritora Veronica Stigger. A mostra reúne cerca de 300 itens, incluindo manuscritos, fotografias, discos e pinturas. Dividida em onze núcleos, apresenta obras criadas por 26 artistas visuais, todas mulheres, em diálogo com os temas recorrentes da escritora. Estão lá trechos dos manuscritos de A Hora da Estrela e Perto do Coração Selvagem, seu livro de estreia aos 22 anos. É possível sentir na penumbra do ambiente a alma de Clarice, suas angústias, sobressaltos, a busca pelo outro e pelo infinito. Toda a estranheza do mundo misterioso da celebrada escritora.

A exposição Um Brasil para os brasileiros, dedicada à trajetória de vida e produção literária da autora mineira, é a consagração de Carolina Maria de Jesus como a grande escritora que é. Famosa internacionalmente com seu livro de estreia Quarto de despejo, de 1960, ela passou anos incensada como uma “escritora favelada”, e só obteve reconhecimento literário décadas depois.

Deixou obras em diversos gêneros - romance, poesia, teatro, provérbios, contos, autobiografia – descobertos depois de sua morre. Somente agora alcança a consagração numa exposição montada com base em manuscritos inéditos encontrados pelos curadores, a historiadora Rachel Barreto e o antropólogo Hélio Menezes. Que desmistifica aquela imagem estereotipada criada para enquadrá-la, em que ela aparece nas fotos de jornais e revistas com um olhar triste e um lenço na cabeça, na frente de seu barraco.

E apresenta uma Carolina vaidosa, com cabelos à mostra, em noites de autógrafos, viagens, transitando por aeroportos, cantando suas músicas. Depois de uma longa trajetória de lutas, em que saiu de casa com a mãe, em Sacramento, peregrinou em busca de trabalho pelo interior paulista, e instalou-se na favela do Canindé, de onde saía para trabalhar como catadora de papel.

Orgulhosa de sua nova identidade, de uma mulher negra e artista emancipada, ela dizia “sou uma escritora, sou uma artista.” No alto da parede de uma das salas, cintila em neon fluorescente vermelho sua frase: “Uma mulher negra feliz é um ato revolucionário.”

Antes que Alice e eu nos despedíssemos das exposições, vimos Clarice sair do elevador apressada, levando na mão um texto rabiscado para mostrar à amiga. Encontrou Carolina descansando, absorta, sentada numa cadeira, com uma planta no vaso a seu lado, as unhas pintadas de vermelho. Disse: “Vim buscá-la para um café, e depois duas tragadinhas rápidas lá fora, na calçada da Paulista”. E saíram caminhando as duas escritoras, protagonistas marcantes da história literária deste país, que deixam um obra intemporal para as gerações futuras.

*Jornalista e escritor

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