Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Sufocados, brasileiros se retiram em debandada

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Publicado em 16/09/2021 às 12:35

Alterado em 16/09/2021 às 12:35

Álvaro Caldas JB

Num processo silencioso, em meio à tensão, ao desemprego e à fome, os brasileiros estão se mandando para o exterior. Há uma debandada forçada de pessoas, grupos de amigos e de famílias inteiras tomando o rumo das fronteiras e aeroportos, dispostos a sair de qualquer jeito para tentar sobreviver ou trabalhar no estrangeiro. Não se trata de uma fuga de cérebros, cientistas e pesquisadores que não encontram mais espaço, são pessoas comuns, descrentes do Brasil, que perderam completamente as esperanças.

As dores e perdas são pessoais ou vividas em famílias, não dá tempo nem de explicar aos filhos o que está acontecendo. Vizinhos não ficam sabendo. De repente, aquela família do 302 desapareceu. Pesquisas mostram que o número de brasileiros que decidiu ir morar no exterior, mesmo correndo grandes riscos e aceitando qualquer trabalho, cresceu de uma forma assustadora. Um sentimento contagiante que se espalha, atingindo milhares de pessoas.

Gente de classe média, de classe média baixa, pequenos e grandes empresários. Excluídos e sem oportunidades de trabalho, os mais pobres são dizimados silenciosamente aqui mesmo. Independente das restrições de fronteiras impostas pela pandemia do covid 19, os fluxos migratórios cresceram mais de 35% entre 2018 e 2021. Quando fenômenos desta grandeza acontecem, envolvendo parte considerável da população, eles se conectam diretamente com o processo histórico.

Associado a este longo período de desagregação trazido pelo capitalismo neoliberal, impulsionando movimentos extremistas de direita mundo afora, as pessoas tendem a se isolar. Passam a ter medo dos outros, dos vizinhos. Nada mais se conversa entre eles nas poucas vezes em que se encontram no elevador. Nem mesmo aquela pergunta banal se o tempo vai mudar e se virá chuva à noite.

O outro pode ser pode ser um inimigo. E, pior, pode estar armado, como recomendam manuais bolsonaristas. A ação deste vírus, acoplado ao medo da pandemia, criou um ambiente de pânico. Nota-se um certo cansaço, as palavras tornaram-se secas e raras, estamos desaprendendo de falar. Os laços de sociabilidade se dissipam ao mesmo tempo em que os empregos se vão, a carreira acadêmica é interrompida, os filhos deixam de ir às escolas, falta comida na mesa e a obsessão pela sobrevivência se instala.

Parlamentares e autoridades agem de forma farsesca e irracional, praticam ações e atos que no dia seguinte são negados. Integram um governo de extrema direita corrupto, que se tornou uma ameaça às instituições e à vida dos brasileiros. O país virou uma espécie de pária no cenário internacional. Não serve mais aos interesses de investidores e do mercado financeiro, seus fiadores que lhe dão sustentação. Criou-se uma sensação de instabilidade e ruptura.

A qualquer momento um golpe pode ser anunciado, os tanques descerão da Vila Militar para as ruas. Cabe ao chefe deste poder sufocante e policialesco determinar a hora em que desfechará o ataque. Mas ele pode recuar no dia seguinte, numa manobra inescrupulosa e repulsiva. Trata-se de um frustrado capitão em guerra contra seus adversários, os brasileiros, deixados na expectativa da iminência de um ataque.

Algo semelhante ao que sentiam os habitantes de Londres, durante a Guerra. A qualquer momento podiam ser surpreendidos pelas sirenes do sistema de alarmes. Andando pelas ruas, corriam em desespero para os abrigos, enquanto os caças nazistas despejavam bombas incendiárias.

Há a secreta esperança de reunir forças e pressionar pela abertura de um processo de impeachment. É claro que será necessário não dar tréguas aos indesejáveis, romper com os silêncios, falar novamente com os vizinhos, sair às ruas. Estender as mãos para uma grande mobilização, capaz de vencer a truculência de um poder autoritário defendido por fiéis fanáticos.

Nenhum país pode ser humilhado e derrotado desta maneira, inclusive este, que desde o inicio foi marcado pela discriminação e violência contra indígenas, negros e homossexuais. Uma província que Darcy Ribeiro chamou, num de seus sonhos, de “a mais bela do mundo”. Sedutor e adorável, Darcy tinha razão, mas eles não deixaram que seguisse seu destino.

Um país amado por seus habitantes. Passou por muitas transformações, agora não é mais o mesmo, parece que não estamos no mesmo lugar. Acuadas, famílias estão sendo levadas a vender seus móveis, geladeiras, suas bicicletas, seus livros e até suas casas, para pagar as despesas de uma viagem inescapável. Ao contrário de outras vezes em que emigraram, não pretendem voltar. Barrados nas fronteiras ou nos aeroportos, percorrerão outros caminhos e tentarão de novo.

Sentem-se sem perspectivas, como acontece quando a pessoa é atingida por uma desgraça. Mas relutam e insistem ainda, tentam se reaproximar. A palavra da vez é resistência, dar uma reviravolta. Se nada que tentarem der certo, resta então a chance de começar tudo de novo. Levantar aos céus o clamor de uma nova era dos descobrimentos. Convocar os navegadores formados pela Escola de Sagres, com as caravelas saindo do porto do Restelo, em Lisboa, de onde partiram Vasco da Gama, em 1497, e Pedro Álvares Cabral, em 1500. Rumo a um novo mundo desconhecido.

*Jornalista e escritor

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