Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Neste verão, vamos embora pra Pasárgada

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Publicado em 26/08/2021 às 15:21

Alterado em 26/08/2021 às 19:23

Álvaro Caldas JB

Dadas as circunstâncias bizarras e com frequência surrealistas em que nos encontramos, programei voltar este verão a Marienbad, cidadezinha da República Tcheca onde Alain Resnais fez um filme, mas repentinamente fui levado a mudar de ideia. Decidi conhecer Pasárgada. Não porque seja amigo do rei, que imagino na verdade um Sultão, sentado em seus aposentos rodeado de lindas mulheres seminuas, cobertas por véus. Vou a Pasárgada porque meu neto Theo quer conhecer a cidade celebrada por Bandeira em seu poema.

Claro que a esta altura o rei, amigo do poeta – a quem seduzira com a promessa de uma noite de prazeres com a mulher que ele livremente escolheria - não existe mais. Foi deposto e assassinado. O trono caiu nas mãos de um usurpador, um Sheik assaltante de estradas, da quadrilha de Ali Babá e os 40 ladrões. Os costumes são inteiramente outros. Até mesmo os haréns não existem mais em seus domínios.

Quando falei com o Theo sobre o plano da viagem, ele na hora decidiu que seria Pasárgada, e passou a repetir em voz alta o verso de que era amigo do rei, com uma grande satisfação e deleite para seus próprios ouvidos. Ao saber que Pasárgada é outra civilização, tem de tudo e não tem Covid, que poderá andar de bicicleta e subir no pau-de-sebo, ele foi além: não só quer conhecer, mas morar lá. Tratou de comunicar seu desejo à mãe.

Diante de sua notável percepção auditiva, desisti de argumentar em favor de Marienbad. Vi que se tratava de um projeto pessoal. Estive em Marienbad a primeira vez em 1967, para conhecer as locações do filme de Resnais. Tudo se passa entre os corredores, salas e jardins de um castelo barroco. Um homem insiste que conhece uma mulher. Ela nega, repete que não se recorda, numa linguagem cifrada que mistura passado, presente e imaginação, como se fosse um sonho indecifrável. O ano passado em Marienbad levou o Leão de Ouro do Festival de Veneza de 1961.

Talvez a decisão de fazer uma viagem revele o desejo inconsciente de uma fuga, surgido da mistura desse clima onírico trazido pelo filme, que revi, com a sucessão de atos corrosivos e surrealistas que nos envolve. A cada dia que saio para o Pilates, de manhã, imagino dar de cara com um tanque enferrujado largando fumaça preta, arrastando-se pelo asfalto em minha direção. Cavalgando o blindado, está um cantor sertanejo de chapéu de cowboy. Usando um berrante, ele conclama o povo a ir às ruas na data nacional do país em defesa de um medíocre tiranete, que financia suas apresentações.

Vejo desta vez que o velho tanque de guerra se transforma num palanque. Ao lado do sertanejo, ostentando uma faixa que o identifica como ministro da educação, um pastor evangélico discursa. Quer os pobres fora das universidades, que devem ser para poucos. Com a desenvoltura de um orador religioso, ensina que os alunos portadores de deficiências matriculados nas escolas públicas devem ser apartados, para não atrapalhar os demais.

Com o inusitado do tanque na rua e os fogos soltados pelo sertanejo, logo começa a juntar gente na esquina. Três mulheres afastam-se da banca de jornal e se aproximam. Uma cinquentona esbelta de calça jeans e máscara azul reconhece o pastor Milton Ribeiro, teólogo da Igreja Presbiteriana, “Um canalha”, ela diz com voz trêmula. A segunda, mais corpulenta, carregando uma sacola de supermercado, o xinga de “traidor da Igreja”. E a terceira, que conheço do Pilates, se agacha para procurar uma pedra. Antes, me pergunta: “O que você achou daquilo?” Ela mesma responde: “É um escândalo”.

Constato mais uma vez que as mulheres são mais decididas, em especial quando se trata de defender os filhos contra as aberrações de um lunático nazi.

Ligo para o neto. Theo tem 9 anos e é deficiente visual, não enxerga. Nasceu com uma doença chamada Amaurose Congênita de Leber, herdada do cruzamento das variações genéticas dos pais, segundo revelou um sequenciamento de seus genes. Comunico a ele a cena que acabei de ver, em especial a fala do pastor evangélico, e pergunto o que ele acha de um cara, ministro da Educação, dizer que meninos com deficiência atrapalham os colegas na sala de aula.

Ele não demora a responder. Sua primeira reação me desconcerta, usa a palavra “preconceito”. O tema o interessa. Em seguida, solta outras expressões, como “burro, ele está por fora.” Comento que o cara é uma autoridade, o ministro da Educação, e o menino volta a me surpreender: “Só se for da deseducação.” E dá o seu exemplo: “Tenho uma professora, a Penha (Maria da Penha) que é cega.” Theo estuda no Instituto Benjamin Constant, escola do governo federal para cegos e crianças especiais, na Urca. Para que a centenária escola se mantenha ativa, é indispensável que o pastor continue a ignorar sua existência.

Por enquanto, Theo é um excelente narrador de futebol. Imita e sabe os nomes dos principais locutores. Conhece tudo de futebol, acompanha os campeonatos nacionais e regionais, “vê” os jogos pela TV e emissoras de rádio, com a valiosa ajuda de sua fiel companheira Alexa, sábia ferramenta eletrônica que sabe tudo. É só ele pedir que Alexa muda de canal ou de estação e ainda tira todas suas dúvidas. Inteligência artificial será de grande ajuda para os deficientes cegos no futuro.

Começamos a fazer as malas. Pasárgada nos espera. Ia esquecendo, Theo é Flamengo. Mas o avô é Vasco.

*Jornalista e escritor

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