Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Dos cafundós de um cárcere ao hino da liberdade

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Publicado em 15/07/2021 às 18:51

Alterado em 15/07/2021 às 18:54

Álvaro Caldas JB

Quando a pandemia chegar ao fim e Bolsonaro desaparecer no quinto dos infernos, artistas e criadores poderão voltar ao trabalho e se rejubilar. Quando finalmente as máscaras retornarem às gavetas no fundo dos armários, e aquele títere condenado por seus crimes for esquecido nos cafundós de um cárcere, então poderemos respirar de novo, pensar e agir criativamente com liberdade. E comemorar com Millôr Fernandes e Flávio Rangel, levando à cena o espetáculo Liberdade, Liberdade, que estreou em 1965 no Teatro Opinião, no Rio.

Desde o inicio, o atual governo se armou para sufocar a cultura e desmontar suas estruturas. A rica e diversificada produção artística e cultural brasileira enfrenta o árduo desafio de sobreviver num ambiente mesquinho de censura, perseguições, corte de verbas, agressões e discriminações de todos os gêneros, que atingem especialmente iniciativas dos movimentos gays, de mulheres e de negros.

Quando finalmente isso acabar, a retomada de atividades virá com uma perda imensa e um atraso considerável, mas tudo indica com muita disposição para retomar projetos, contar histórias, reunir, confabular e bebericar. Escrever livros, encenar peças, fazer filmes, cantar e dançar, pintar e reabrir as galerias, os teatros os cinemas, os festivais, os pagodes e os terreiros.

Como se estivéssemos saindo das trevas de uma longa ditadura. Diferente da que se instalou com o golpe de 1964, declarada e assumida com o AI-5 e os Doicodis, seus instrumentos de dominação e tortura. Mas de um regime opressivo e dissimulado, construído com atos e arremedos de intimidação, que dissemina mentiras, ódio e ameaças, que deturpa a linguagem que usamos. E que detesta a arte, os artistas e a simples menção à palavra cultura, à qual respondem tirando do coldre uma arma, imitando os nazistas.

Com os espaços culturais fechados, criadores e artistas recolheram-se, adiaram seus projetos, foram submetidos a uma pausa forçada. Arnaldo Antunes sentiu-se imobilizado e passou um período sem produzir. Refugiou-se num sítio e dedicou-se às leituras, ao convívio familiar, a cuidar de bichos e cultivar hortas. Aos poucos voltou a produzir e acaba de concluir Algo antigo, livro de poemas sobre o tempo e a memória.

Para o cantor e poeta, são evidentes os motivos pelos quais os atuais governantes e seus apoiadores ameaçam, atacam e trabalham pelo desmonte da cultura. Uma das regras do jogo é deteriorar o próprio sentido das palavras, a utilização da linguagem. São tantas as aberrações que até a capacidade de se indignar e reagir se perde numa perplexidade contínua.

Perplexidade que chegou ao escritor Julián Fuks, que acaba de publicar Romance: história de uma ideia, um estudo sobre a arte romanesca. Coincidindo com o nascimento de sua segunda filha, a pandemia o afetou de forma profunda. Ficou impossível encontrar espaço e tempo para a reflexão e a escrita. Para o autor de A Resistência, é aterrorizante o que está acontecendo no Brasil de hoje. Estamos imersos num pesadelo de extrema gravidade. Um momento muitíssimo agudo.

Para transformar esse cenário, ele acredita que será preciso entender com profundidade o que está ocorrendo, processo que já começa a acontecer, mas tem muito chão pela frente. Escritores certamente irão escrever sobre a pandemia. É um fenômeno que pode render boa literatura. Difícil prever, há o temor de que se repitam. Aliás, a imprevisibilidade é uma das marcas da própria literatura, o que ela tem de mais interessante.

Em todas as áreas, confrontos com o poder se sucedem. São pequenas e caprichosas interferências contra artistas e jornalistas, que vão de atos de censura até ameaças de morte. O Festival de Jazz do Capão, realizado há nove anos na Chapada Diamantina, Bahia, foi impedido de captar recursos pela Lei Rouanet. De acordo com um obscuro parecer da Funarte, a censura foi devida a um cartaz publicado pelos organizadores com uma imagem onde está escrito Festival antifascista e pela democracia.
Alguém é contra? Só os defensores do fascismo podem vetar um cartaz como este, caso do secretário especial de Cultura, Mário Frias. O escritor e músico Paulo Coelho e sua mulher, Cristina Oiticica, ofereceram-se para financiar a realização do festival.

Em outra frente de batalha, cineastas e documentaristas, como Silvio Tendler e Helvécio Ratton, estão empenhados na aprovação pelo Senado do projeto de lei Paulo Gustavo. Está em jogo a restituição à cultura de recursos que são dela mesmo por direito, cerca de R$ 2,8 bilhões, travados pelo governo federal com o intuito de destruir a indústria do audiovisual brasileira e outros setores. Cerca de 300 mil trabalhadores estão impossibilitados de trabalhar desde o início da pandemia. Dezenas de filmes, séries e documentários brasileiros paralisados, à espera de uma solução.

Quando a pandemia chegar ao fim e Bolsonaro desaparecer no quinto dos infernos. Quando afinal filmar, encenar, compor, escrever, pintar e dançar for possível, tornando natural falar a verdade sem disfarces para não ofender os ouvidos dos censores, chegou o momento de convocar Flávio Rangel e Millôr Fernandes para encenação de seu espetáculo. Ao som da bateria da Imperatriz Leopoldinense, que levou para a Marquês de Sapucaí, em 1989, o samba-enredo Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós, de Niltinho Tristeza e Preto Jóia.

*Jornalista e escritor

*Arnaldo Antunes e Julián Fuks deram entrevistas a Rascunho, o jornal de literatura do Brasil

 

 

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