Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

As ruas têm o poder de decidir impasses

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Publicado em 03/06/2021 às 20:08

Alterado em 03/06/2021 às 20:09

Álvaro Caldas JB

Notícia ruim tem muita. Em sua quase totalidade as notícias que nos chegam são indesejadas, tristes, indignas, carregadas de ódio. Absurdas, tenebrosas e terroristas, algumas. Mortes de amigos se atropelam, não dá nem tempo de chorar, consolar os que ficam, respirar um pouco de ar fresco, como diz uma amiga. Mas de repente entra uma boa. Tivemos um sábado festivo, de verdadeiro renascimento. As ruas se encheram num protesto em que as pessoas mascaradas se deram as mãos. Puderam extravasar uma parte de sua imensa energia reprimida.

Os jovens voltaram a mostrar a cara, um punhado deles. Desde 2013 isso não acontecia. As ruas ficaram coloridas, senhoras e senhores, moças e rapazes, muitos estreantes, com bandeiras, cartazes e slogans do tipo “não é mole não, tem dinheiro pra milícia mas não tem vacinação”. É sintomático e saudável para a sociedade ver a juventude indignada manifestando sua rejeição a uma situação limítrofe de ameaça à vida e à democracia, gritando “queremos vacina e fora Bolsonaro”. Ainda que este nome tenha se tornado impronunciável, dada sua carga de malignidade.

Numa de suas grotescas piadas, ele reuniu seus seguidores no curralinho do Alvorada para dizer que o ato foi um fracasso, por que faltou maconha aos manifestantes. Pois bastaria circular pelas avenidas Paulista, em São Paulo, ou presidente Vargas, no Rio, para sentir o cheiro da erva maldita ou outra das plantas alucinógenas que abrem as portas da percepção, estudadas por Carlos Castaneda em seu best-seller dos anos 1960, A erva do diabo.

O diabo, na forma de contestação, esteve lá. Os sonhos de defender a liberdade e a democracia foram embalados pela percepção amadurecida de que a sociedade está sendo governada por um louco, que faz uso sistemático da mentira para confundir. Que com sua politica ambiental e de saúde colocou o país numa situação trágica de destruição da natureza e milhares de mortes. E tem a implantação de uma ditadura de extrema direita como seu como seu projeto final. O bolsonarismo foi a droga pesada que estimulou os jovens caminhantes.

Centenas de milhares de manifestantes, em mais de 200 cidades no Brasil e no exterior, num total calculado pelos organizadores de 420 mil pessoas. De forma pacífica e organizada, pediram vacinas e o impeachment de Bolsonaro. Seu aliado, deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, respondeu que não será uma simples manifestação que vai levá-lo a tirar da gaveta um dos 110 pedidos de impeachment. O protesto alertou-o de que deve ficar atento, pois pode se tratar de um ensaio que será seguido por outros. As ruas, ou as armas, têm o poder de resolver impasses políticos.

Mantido o ânimo contestador, há um fato novo no cenário político nacional, condenado a uma submissa repetição de gestos suicidas nos últimos meses. Depois de um longo período de hibernação imposta pela pandemia, a sociedade expressou seu inconformismo ao bolsonarismo junta-cadáveres. O 29 de maio cravou uma marca que deve se repetir no futuro. Este é o desafio de todos para deter o fascismo já, antes que a serpente ponha a cabeça para fora diante de nossos olhos.

As manifestações desenrolaram-se de uma forma rápida, organizada e sem confusões. Violência só a praticada pela PM de Recife, uma clara demonstração de provocação dada pelos bolsonaristas infiltrados nas polícias militares. O que já havia ocorrido na chacina da favela do Jacarezinho, no Rio.

Au revoir, camarada René!
Esta semana perdemos René Louis de Carvalho, 77 anos, um socialista gentil e de alma generosa, que optou pela luta armada nos anos de confronto aberto. René integra uma geração que viveu sua juventude e início da vida adulta sob a opressão de uma ditadura. Nascido na França em plena guerra, onde Apolônio, seu pai, foi parar depois de combater na guerra civil da Espanha. Em Paris, ele integrou-se à Resistência onde conheceu a jovem comunista Renée. Apaixonaram-se e nasceu René, depois Raul.

Com a volta da família para o Brasil, teve vida semiclandestina o tempo todo. O pai, dirigente do PCB. Usou vários nomes para não ser identificado nos colégios em que estudou. Não teve moleza, foi direto para a militância. Estudou Economia. Conheci-o aí nestas quebradas, eu ainda com vida legal, jornalista, trabalhando no JB. Inúmeras reuniões juntos, incontáveis pontos pelos subúrbios da cidade. Gostava de vê-lo falar, expunha suas ideias com uma clareza tal que me impressionava, e deixava a revolução mais perto. Uma hora a Organização começou a cair. Fomos presos no mesmo dia, uma manhã de sábado, em pontos diferentes. Levados para a mesma oficina de torturas.

Cruzei com ele nos corredores do térreo no Doicodi da Barão de Mesquita, Tijuca. Ele saindo da sala, arrastando-se, torto, camisa jogada sobre os ombros, uma expressão indecifrável no rosto que sangrava. Eu sendo levado para substituí-lo. Nunca vou me esquecer de seu olhar. Uma mistura de assombro e advertência. Voltamos a nos encontrar na ampla cela do Regimento Sampaio, cana dura na Vila Militar. Cidadão francês e fumante, conseguiu a regalia se receber os seu famosos Gauloises, carteira azul, levados por um funcionário do Consulado. Os milicos ficavam putos. René foi libertado no grupo de 40 presos trocados pelo embaixador alemão, em junho de 70.

No exilio, casou-se com Ângela, depois nasceu Maithê. E tornou-se doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris VIII. De personalidade amável e uma risada franca e aberta, deixou sua marca e muitos amigos por onde passou. Combatente, militante, economista, professor, um intelectual engajado que gostava de livros, de bancar o chef na cozinha. E, claro, de vinhos franceses. Não resistiu ao ataque do covid. Au revoir, René Louis de Carvalhô.

*Jornalista e escritor