Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

No embate entre o senador e o capitão, um dia histórico

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Publicado em 15/04/2021 às 17:33

Alterado em 15/04/2021 às 17:33

Álvaro Caldas JB

Quando desci do táxi às 9 horas diante dos portões laterais da Fortaleza, ele já se encontrava na praça cercado de seus capangas. Paletó escuro, rosto suado, gestos espa-lhafatosos. Grupos de moças e rapazes circulavam estendendo faixas e pregando carta-zes lembrando os assassinatos de prisioneiros dentro das muralhas. No centro da praci-nha Lamartine Babo, sob o sol ameno da manhã de primavera, parlamentares e membros das comissões Nacional e Estadual da verdade improvisaram uma reunião. Decidiram por consenso que não aceitariam a presença do intruso entre eles.

Lembrei-me de um tempo amargo, um outro mundo. Esta era a terceira vez em que vou entrar no Batalhão de Polícia Exército, a chamada Estação Terminal Doicodi, na Tijuca, bairro de classe média do Rio. Nas outras duas cheguei sem nada ver, fechado e deitado dentro de um carro, algemado e de capuz na cabeça. Sem saber se voltaria vivo para casa. Na segunda vez então, em que fui sequestrado e desapareci nos porões por uma semana, mais do que na primeira, quando fui preso num trivial ponto de rua.

Agora estava na condição de membro de uma Comissão da Verdade que represen-tava o Estado, ao lado de senadores e deputados representantes da sociedade civil. Ha-via no ar um clima de tensão, mas nada que prenunciasse o tumulto e a confusão que viriam. Quando iniciamos a jornada em direção ao portão principal do Forte, o deputado Bolsonaro veio atrás com provocações. Apressamos os passos, seguidos por uma trupe de repórteres, cinegrafistas e militantes dos direitos humanos.

Nosso pelotão marchou unido. À frente, os senadores Randolfe Rodrigues e João Capiberibe, seguidos pelas deputadas Jandira Feghali e Luiza Erundina. Wadih Damous, Nadine Bastos e Álvaro, pela Comissão da Verdade do Rio, e os tarimbados advogados de presos Marcelo Cerqueira e Modesto da Silveira. Enquanto andava busquei afastar os temores e a ansiedade que me afligiam. Acendi uma cigarrilha e procurei uma voz de conforto e ternura no diálogo com duas mulheres combativas, Erundina e Nadine.

A vivência dos cheiros e do ambiente chegavam em ondas. O horror é contagiante. Revejo imagens dilacerantes, em preto e branco, como se na sala de tortura não houvesse cor. Carrego uma incerteza dentro de mim, mas me convenço de que se trata apenas de uma visita de inspeção às dependências do quartel que abrigou cenas de tortura durante a ditadura. Nas auditorias militares, quando íamos depor, os escrivães registravam a pa-lavra “maus tratos” por que a outra era ofensiva, os militares não torturavam em seus quarteis. Muitos dos mortos e desaparecidos tinham os seus rostos e nomes exibidos nos cartazes da praça.

Logo que cheguei, ainda zonzo, me vi diante do cabo Gil, o sádico porteiro da boate, e ouvi sua voz me desejando boas-vindas. Ordenou que lhe passasse o cinto - a calça tiraria mais adiante - e que lhe entregasse a carteira e o relógio. Gil se apoderava dos bens dos presos. Olhando para baixo, vejo o chão de cerâmica pintado de verde ao longo do comprido corredor que leva às solitárias no fundo. No interior das celas os bas-culantes gradeados ficam no alto da parede, que dava para a fábrica da Brahma, que operava do outro lado, ao clamor dos gritos dos dependurados.

Mais alguns passos e os dois senadores estão diante do portão principal da Fortale-za, apresentando as credenciais aos donos da casa. Bolsonaro irrompe e se intromete aos gritos forçando passagem para entrar. Capiberibe explica que ele não faz parte da Co-missão nem seu nome integra a lista. O capitão grita, xinga, cospe e esmurra Randolfe, que bloqueou sua entrada, e é agredido com um soco por baixo, que pega na barriga. Os oficiais militares chamam o provocador à parte, passam a mão em sua cabeça e deixam que ele entre em separado, distante da comitiva. Estava em casa.

Feita a pantomina diante das câmeras, a visita de reconhecimento longamente ne-gociada com o ministério da Defesa teve início. Pela primeira vez, desde o fim da dita-dura militar, os portões da Fortaleza do Doicodi foram abertos para uma comissão civil vistoriar suas dependências. A cena do tumulto voltou aos jornais semana passada com o vazamento de uma conversa gravada de Bolsonaro com o senador Jorge Kajuru. Ele tornou a ameaçar de porrada “esse bosta se ele continuar a encher o saco”, disse o capi-tão referindo-se ao senador, autor do requerimento da CPI da Covid no Senado.

A visita começou tensa e foi filmada por um soldado do Exército. Percorremos todas as instalações do PIC, o Pelotão de Investigações Criminais, onde foi instalado o Doi, em dois grupos distintos, o da comissão e o dos miliares. Logo que entrei me senti no lugar, a sensação bateu em ondas. A estrutura é a mesma, um prédio de dois andares. Ando devagar, atordoado, atravesso túneis, corredores, procuro fios e cavaletes na sala do inferno.

Desorientado, me perco algumas vezes, buscando referências na memória. Falei compulsivamente. Os oficiais observam em silêncio, com uma expressão desolada. Um deles pergunta se estou me sentindo bem e manda o sargento trazer um copo d´água. Com a boca seca, viro o copo de uma vez. Nadine, Wadih e Randolfe perguntam sobre os mortos, quanto tempo durava uma sessão de porrada. Como um guia turístico cami-nhando sobre ruínas, faço a descrição dos desfiladeiros e penhascos.

Uma hora e meia depois a visita é encerrada. Estamos extenuados. Mas não há desesperança. Os militares nos convidam para um lanche. A mesa já está posta com sanduiches, biscoitos, sucos e café. Somos conduzidos até o portão de saída. Ao trans-pô-lo, dou de cara com uma agitada concentração de repórteres, fotógrafos, cinegrafis-tas, amigos e militantes que nos aguardavam. Batem palmas. Abrimos passagem até o meio da praça com o nome do músico, contornada pela rua Barão de Mesquita e a ave-nida Maracanã, para iniciar as entrevistas.

Digo que foi um dia de cão, este 23 de setembro de 2013, que ficará na História não como o palco de uma grotesca palhaçada encenada por um estúpido capitão, mas como o dia em que as entranhas da Estação Doicodi foram reveladas. Pedimos seu tom-bamento e sua transformação num Museu da Memória.

*Jornalista e escritor