Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

A crueldade de abril e a luz das manhãs maias

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Publicado em 08/04/2021 às 12:12

Alterado em 08/04/2021 às 12:13

Álvaro Caldas JB

“Abril é o mais cruel dos meses”, é um verso celebrado no universo da cultura por seu impacto e beleza. Tudo indica estamos diante desta dramática sentença enunciada pelo poeta de língua inglesa T.S. Eliot, na abertura de seu poema The Waste Land (A terra devastada), numa alusão aos tremores da terra com a chegada da primavera no Hemisfério Norte. A chegada do outono para nós, em contraposição, indica a aproxima-ção das ternas “manhãs maias”, com sua luz azulada e reconfortante, celebrada por outro poeta, o gauche Carlos, em uma de suas crônicas. Marcado por essa dualidade, abril co-meça carregado de sintomas trágicos.

Não se trata de um “Claro enigma”, como titulou Carlos Drummond um de seus mais belos livros. A brisa das claras manhãs de maio poderão reconfortar os raros habi-tantes que saírem às ruas neste outono, ainda que continuemos mergulhados num mundo de incertezas, submersos em plena escuridão. Devemos nos preparar para o pior: os pró-ximos 15 dias de abril serão dramáticos, as mortes diárias poderão chegar a cinco mil, advertem cientistas e médicos que analisam as causas da progressão acelerada da mor-tandade.

Entre as mais notáveis destacam-se as torpezas de um presidente irresponsável que despreza a vida e fez do negacionismo a sua meta. Transformou o país num vasto hospi-tal sem medicamentos, atulhado de pacientes às portas da UTI. De lá são levados em túneis escuros para os cemitérios, onde os corpos asfixiados são empilhados e entregues à administração de seu dono, o coveiro Bolsonaro. Os sobreviventes estão condenados ao desemprego, à miséria e ao desalento, com a fome rondando suas casas.

Outro poeta - hoje é o dia deles - Thiago de Mello, que acaba de fazer 95 anos, mostrou-nos um dia que é possível cantar no escuro. Pois é o que tentaremos fazer, antes que uma nova ditadura, esboçada em tantos gestos e falas do insano evangélico de ex-trema-direita, nos cerque e sufoque, como uma variante da covid 19. A realidade se apresenta tão devastadora que nos induz a ouvir a voz dos poetas, esses homens e mu-lheres iluminados. Suas metáforas nos ajudam a ver de outra forma a aridez e o sofri-mento que se passam ao redor, nesses caminhos pontilhados de pedras. No meio do ca-minho havia uma, já avisara Drummond.

Se enganam os que pensam que os poetas são apenas seres românticos, que cultu-am a metafisica, falam de ninfas e amores perdidos. São ranzinzas e teimosos, prezam bebidas fortes e alguns deles são atrozes ao manifestar sua visão e sentimento do mun-do. O pernambucano Joao Cabral de Melo Neto, um das poucas pessoas na face da terra que viu um “Um cão sem plumas”, dedicou alguns de seus poemas à tragédia social bra-sileira. A morte e os cemitérios estão entre seus temas. Em Morte e vida Severina, ele expõe o ritual de enterro do lavrador de um canavial, e uma conversa entre dois covei-ros, que dialogam sobre a rotina dos enterros e a quantidade de defuntos.

Ao pensar esta crônica sobre as misérias do neoliberalismo brasileiro nas mãos de um demente fascista, percebi que não conseguiria construí-la sem a companhia dos poe-tas. O poder da arte transcende. Grata por um pouco de ar, como diz minha amiga Cecí-lia Coimbra. Eliot é autor de um dos mais célebres versos para abertura de um poema. “Abril é o mais cruel dos meses/ germina lilases da terra morta/ mistura memória e dese-jo/ aviva agônicas raízes com a chuva da primavera.”

Sua obra versa sobre o declínio da modernidade e o fim do homem. Tem um caráter distópico e místico.

Pode ser lida ouvindo ao fundo o balé da Sagração da Primavera, de Stravinsky, que segue o mesmo tema dos tremores da terra ao desabrochar a estação.

E traduz de forma sombria a terra arrasada em que nos encontramos neste inicio do mês de abril de 2021. Lançado pelas redes sociais, com a assinatura do neurocientista Miguel Nicolelis, o manifesto #Abrilpelavida propõe-se a pressionar os governos federal e estaduais para a decretação de um lockdown imediato de três semanas em todo país. Para Nicolelis e seus pares, professores e especialistas, só radicalizando poderemos evitar o pior abril da história do Brasil.

Para a vacinação fazer efeito é fundamental reduzir a circulação do vírus. O contá-gio está em alta, o vírus se transmutou. Seguimos em direção a um número brutal de cin-co mil mortes diárias, e até julho, meio milhão de óbitos. O negacionista não suporta o isolamento. Já afirmou que as pessoas engordam se ficarem casa, quando não têm o que comer. Fotos de jornais mostram homens e mulheres dividindo sobras em latões de lixo na rua.

Sem coragem para o impeachment, as assembleias e os tribunais podem recorrer aos Estatutos do Homem, obra criada pelo poeta amazonense de cabelos brancos e cara de índio. Diz o Artigo I do Estatuto do poeta Thiago de Mello: “Fica decretado que agora vale a verdade/agora vale a vida/ e de mãos dadas/ marcharemos todos pela vida verda-deira.” No artigo III, decreta que “a partir deste instante haverá girassóis em todas as janelas/que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra/com as janelas abertas para o verde, onde cresce a esperança”.

No pior momento da pandemia, na maldição de abril, uma chama de incêndio consome a terra, como se fosse um rubro final de tarde do mês de maio. As mortes tor-nam-se irreversíveis e incontornáveis. Na iminência de uma catástrofe histórica que pode impossibilitar a arte, eis que o poeta Fernando Pessoa, outro de nossa grei, desembarca de navio no píer da Praça Mauá. Traz em sua bagagem um volume de Tabacaria, seu famoso poema. “Não sou nada/nunca serei nada/não posso querer ser nada/ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

Declama ele mesmo, em pessoa, de chapéu na cabeça, e não seu heterônimo Álvaro de Campos, que assina o poema, uma busca pela sensação do infinito. No cais, a trupe se reúne. De mãos dadas com Eliot, o impávido; Carlos, o gauche; o arredio João Cabral, e o amoroso Thiago, saem numa passeata pela avenida Rio Branco em direção à Cinelân-dia. Numa faixa atravessada de um lado a outro da larga avenida, está escrito Abaixo a impostura, o essencial é viver

*Jornalista e escritor