Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

A sucessão de 2022 passa pelos labirintos do centro

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Publicado em 18/03/2021 às 22:06

Alterado em 18/03/2021 às 22:06

Álvaro Caldas JB

O ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva saiu da prisão lhe foi imposta pelo contestável juiz Sérgio Moro numa sexta feira, 8 de novembro de 2019. Passou 580 dias em cana numa cela da PF no Zoológico de Curitiba. Havia romaria e turismo para vê-lo enjaulado. Deixaram-no em liberdade vigiada sem tornozeleira eletrônica, enquanto Bolsonaro construía seu projeto ditatorial. Um ano e quatro meses depois, como numa obra romanesca aberta, ele reaparece em cena com um discurso memorável em São Bernardo, sua segunda cidade natal, e muda totalmente o jogo da sucessão presidencial para 2022.

O nordestino personagem deste romance em construção não escapa das ambiguidades dos bons personagens. Nas extremidades, é amado ou detestado, alguns o temem, outros o veem como gerador de esperanças. Seu nome ressurgiu na imprensa, voltou a se projetar nas pesquisas, a piscar na bola de cristal das cartomantes e até mesmo foi visto no Aleph, a misteriosa esfera resplandecente de Borges, capaz de apontar todos os pontos do universo simultaneamente.

O reinício da jornada sucessória será extremamente difícil e desde logo impõe a distribuição de novas cartas e escolha de novos parceiros, projetando uma reviravolta de posições no tabuleiro. Certo apenas, por enquanto, é que de um lado estará a barbárie, com Bolsonaro e suas falanges. A construção desta obra ficcional de autoria coletiva se desenrola enquanto o país vive um quadro dramático da crise sanitária, seu pior momento na pandemia. O vertiginoso aumento do número de mortes avança célere para o total de 300 mil, associado à fome, ao desemprego, ao desamparo e à derrocada do próprio capitão, que já se sente pressionado pelo pessoal amigo do mercado, que o sustenta.

É neste cenário de tensão, muito bem explorado pelo narrador, que o ex-prisioneiro faz sua reentrada em cena no anfiteatro do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo. Ele usa máscara, defende a imediata aplicação da vacina e diz não guardar mágoa dos que o prenderam e magoaram. Num desempenho realista de grande impacto, visto como brechtiano pelo crítico do Le Monde, suas palavras e gestos tiveram repercussão imediata em Brasília, pelo Brasil e mundo afora.

Desmoronaram no ato os cenários anteriores para a indicação de nomes e alianças com vistas à sucessão de 202. A disposição de ir à luta manifestada pelo ex-metalúrgico de 75 anos, chamado de “sapo barbudo” por Brizola, mudou a denominação das placas de ruas e avenidas com nomes de candidatos. Com seus mais de 30 anos de estrada, o brasileiro já o conhece pela voz e por suas piadas. Cobram dele e de seu partido uma autocrítica pelos erros em seu governo, que ainda não se dispuseram a fazer.

Disputou sua primeira eleição presidencial em 1988, perdeu para Collor. Tornou a perder em 1994 e 1998 para FHC e ganhou as duas seguintes, em 2002 e 2006. Com a elevada aprovação de seu governo, elegeu a ex-guerrilheira Dilma sua sucessora. Com esses dados nas mãos para iniciar um novo capítulo, o narrador suspende a mão do teclado e coça a cabeça, indeciso. Seu romance empaca. Por qual avenida caminhará o calejado metalúrgico no emaranhado de cruzamentos deste labirinto?

Ele sabe que o brasileiro não é radical, que o centro é um manancial de votos que não tem um líder, um candidato em potencial. Todos os que tentaram fracassaram. Então deve ser por aí. A realidade eleitoral indica ocupar o centro vazio, com tinturas à meia- esquerda e à direita liberal. Talvez com o risco de disputar esse território com o atirador Ciro Gomes, que busca se firmar num centro mais à direita. E com quem ficará a esquerda? O pensamento de esquerda com seus elementos críticos que iluminam os caminhos será representado por Guilherme Boulos, uma jovem e autêntica liderança que surpreendeu na disputa pela prefeitura de São Paulo.

O centro ficou vazio em busca de uma liderança capaz de unir as forças que se opõem à infâmia e ao terror, criando uma polarização em nome da defesa dos valores da democracia. O astuto candidato a ditador atraiu, cooptou, ameaçou e arrebanhou para a direita seus representantes. Limpou o território com a ajuda dos filhos, das rachadinhas e das igrejas lucrativas. Nenhum dos virtuais candidatos indicados para representar o setor passou no primeiro teste de pesquisas. Destaque-se que não há mulheres nem negros neste seleto rol de presidenciáveis.

Tudo começou com Edson Fachin, candidato a um papel de destaque neste enredo. De repente, vindo das sombras com seu sorriso enigmático, o ministro anulou as condenações de Lula, ao mesmo tempo que o STF prepara-se para decidir sobre a suspeição do juiz de Curitiba, que se mudou para os Estados Unidos. Nesta longa jornada da Lava Jato, os ministros já trocaram de posição e mudaram seus votos várias vezes. Dão a impressão de que cada um tem a sua própria Constituição, dorme com ela debaixo do travesseiro e no dia seguinte a trai.

Um labirinto incrível e difícil de deslindar. Quem sabe talvez com uma consulta ao misterioso Aleph. Borges viu o Aleph uma única vez, num final de tarde, no porão da sala de jantar de uma casa na rua Garay, em Buenos Aires. Teve dificuldades de fixar os olhos naquela pequena esfera fulgurante, através da qual poderia vislumbrar o inconcebível universo de todos os pontos. Viu seu próprio rosto, suas vísceras, sua morte, teve vertigem e chorou. Estarrecido e deslumbrado, em suas palavras.

*Jornalista e escritor