Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Essa obscura História feita de conluios e trapaças

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Publicado em 18/02/2021 às 12:22

Álvaro Caldas JB

A cada nova fraude que se constata fica cada vez mais claro que a História brasileira recente vem sendo construída à base de chantagens, conluios e trapaças. Uma His-tória que se quer digna deste nome, que ficará registrada nos livros, não pode se prestar a esse papel sujo. Episódios decisivos foram manipulados com desfaçatez pelo establisment político, jurídico e militar dominante, com a finalidade de alterar o curso dos acon-tecimentos. Contaram com a participação e o apoio de grandes veículos de imprensa, que ofereceram credibilidade às versões falsificadas, iludindo seus leitores e espectadores.

As correções e desmentidos que já vieram à tona desnudam alguns dos fraudadores, mas não alcançam a sua impunidade. Há um conluio entre eles. Para isso, seria necessária uma forte mobilização da sociedade, condenada à inércia e à fadiga pela exten-são da crise social e sanitária. Ao fazer o registro dos acontecimentos ainda quentes, o jornalismo se caracteriza por ter uma relação direta com a história, tornando-se uma de suas principais fontes de consulta. Não à toa o historiador Heródoto é considerado o pai do repórter. A traição de uma das partes desmoraliza a outra.

Perdas e danos decorrentes desta montagem farsesca são irrecuperáveis, o que indica que temos uma democracia de fachada, em que a sociedade não dispõe de meios e força política para se defender e reverter retrocessos institucionais. Nesse quadro, o atra-so e a desigualdade social continuarão a reinar. O ex-presidente Lula, um dos principais atingidos, não terá reparação pela prisão que sofreu nem condições de voltar a se candidatar a presidente.

Os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin continuarão a se contradizer e a representar seus papeis de acordo com a conveniência. No momento decisivo se acovarda-ram, negando o habeas corpus. Fachin esperou três anos para dizer que o que ocorreu foi “inaceitável e intolerável.” O bizarro boquirroto Gilmar classificou a Lava Jato de “um esquadrão da morte totalmente fora dos parâmetros legais”. Disse que tudo não passou de um jogo combinado, nos moldes da Stasi. Para quem não sabe, a Stasi foi a temível policia política da Alemanha Oriental.

A trapaça maior foi encenada em Curitiba por uma dupla de atores fantasiados de homens da lei. O juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol foram cúmplices num procedimento ilegal de conduzir o processo acusatório. Ganharam o reconhecimento internacional de que houve em Curitiba uma grande farsa, que envergonha a imagem do país. Os privilégios que desfrutam e sua intocabilidade serão preservados. Nada indi-ca que o próximo show da dupla seja numa penitenciaria paranaense.

Na derradeira ponta desta operação, responsável pela chantagem contra o Supremo, está o general Eduardo Villas Bôas e seu alto comando. Com um tuíte em tom ameaçador, na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula, em 2018, garantiu sua permanência no xadrez. Villas Bôas e Bolsonaro compartilham um segredo para o resto de suas vidas.

Juristas entendem que no conjunto destes fatos que mudaram a História há uma manifesta pressão sobre o poder judiciário, ao lado de uma afronta à ordem constitucional e à democracia. Mas o que é isto diante da preservação do poder e da garantia da eleição de Bolsonaro? A versão verdadeira pode voltar a prevalecer, mas o retrocesso é irreparável. Da mesma forma que ninguém se banha no mesmo rio duas vezes, como en-sinou o filósofo Heráclito, o país já é outro e os brasileiros não são mais os mesmos.

Regimes autoritários constroem sua própria história. Stalin falseou a história soviética e impôs sua versão dos fatos em diversos momentos. Acusou Bukharin, um dos lide-res da revolução, de crimes contra o Partido e o povo. Preso, torturado e obrigado a confessar a “traição,” o camarada Bukharin não escapou do fuzilamento. Pressionou Shostakovich, o compositor mais celebrado da União Soviética, até o limite do expurgo. Numa cerimônia de premiação, ele teve que ler constrangido um discurso que não escreveu com elogios ao ditador. Antes, havia sido coagido a fazer autocritica de sua grande Sin-fonia n° 5.

Na ditadura militar de 64 os exemplos de manipulação se sucedem. Historiador que quiser contar a história do período pouca coisa encontrará nos registros da imprensa censurada. Talvez o exemplo mais dramático de censura e distorção dos fatos seja a bomba que explodiu num show no Riocentro, em 1981, atentado praticado por dois militares ligados ao Doicodi. O sargento morreu no local e o capitão saiu ferido. O crime foi atribuído a terroristas de esquerda. Com a divulgação proibida, o Exercito fez um IPM presidido por um general que sustentou a falsidade de autoria. Só vinte anos depois a verdade foi conhecida.

A defesa do direito à memória e à verdade é fundamental para corrigir arbitrariedades de governos autoritários. Ao negar por maioria de votos a existência do chamado direito ao esquecimento, o STF garantiu que não se pode apagar a memória dos fatos que formam o passado da sociedade. Uma maneira de evitar que eles se repitam. Porque essa mesma realidade crítica mostra que Bolsonaro e seus milicianos armados trabalham a galope para um novo golpe, com conhecimento da fórmula de adulteração dos fatos e recomposição da História.

*Jornalista e escritor