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Os quixotes libelus arejaram a política estudantil

JB -
Álvaro Caldas
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Liberdade e Luta continua sendo uma palavra de ordem atual. Os estudantes filiados à Libelu bradavam “abaixo a ditadura” em suas manifestações, criticavam a caretice e o regime de partido único dos países comunistas do leste europeu. Denunciaram a invasão da Checoslováquia pelos tanques russos. Eram críticos dos comunistas tradicionais ditos reformistas e dos que foram à luta armada. Gostavam de bandas de rock e dos Rolling Stones, não gostavam da censura e do Dops e animavam suas festinhas com o uso tolerado de maconha.

Poucos, mas ruidosos, deixaram sua marca num momento de refluxo no início do processo de abertura política. Foram os modernistas de 1922 em outro momento e num novo figurino. Vieram em sua maioria da ECA e Faculdade de Filosofia da USP. Seduzidos pelas ideias e a trajetória do profeta banido Leon Trotsky, formaram uma corrente ligada à Organização Socialista Internacionalista, a OSI, que editava o jornal O Trabalho. Este surto de rebeldia e efervescência política e cultural pode ser visto no documentário Libelu - Abaixo a ditadura, um dos dez longas brasileiros da mostra competitiva do festival É tudo Verdade.

Menos de dez anos depois do apogeu do momento estudantil com a passeata dos cem mil, em 68, os estudantes reaparecem na cena política na segunda metade dos anos 70. Surgem com uma cara nova, bolsas penduradas nos ombros, costumes e ideais antagônicos aos da geração que os antecedeu. Jovens de classe média, brancos, sólida formação escolar, cultos, os chamados pequenos burgueses da peça de Gorki, execrados no jargão marxista tradicional. Não tinham a ambição de poder, um projeto revolucionário, como apregoavam os jovens que enfrentaram a ditadura na década anterior.

Nada de culto à personalidade, de Marx, Lênin, Mao, Fidel ou Che. Liam os existencialistas Breton, Sartre e Simone. O pessoal da Escola de Frankfurt, Adorno e Benjamin. Barthes, Foucault, Cortázar e Murilo Mendes, entre outros. Uma outra visão e sentimento do mundo. Que também está a anos luz de distância dos jovens de esquerda de hoje, estreantes na política nessas eleições. Nascidos no século 21, integrantes da chamada geração Z, abandonaram os livros, vivem a revolução tecnológica e cibernética, uma simbiose de máquinas e seres vivos, e trazem na mente os ecos da convulsão que agitou o país em 2013.

Rejeitam políticos e partidos tradicionais, querem fazer algo diferente sem saber o quê. Não estão vinculados a organizações, exceção daquele percentual mínimo ligado aos partidos comunistas. Todas as discussões coletivas são feitas em lives, o que a pandemia consagrou. Os que se dispõem a uma participação direta na politica possuem ligações e referências familiares, são filhos ou netos de ex-militantes. Orientam-se pelos programas e debates nas redes e trocam mensagens o tempo todo pelo Tik Tok e Instagram. Movimento estudantil é coisa do século passado.

O jornalista e cineasta estreante Diógenes Muniz, 34 anos, que dirigiu o documentário, nasceu e cresceu na democracia. Ele e toda a sua equipe. Diógenes ouviu falar em Libelu pela primeira vez quando leu um poema de Leminski dedicado ao grupo, no qual o poeta se refere aos trotskistas “como aqueles que o poder não corrompeu”. Neste época, ele começou a diferenciar esta geração, mais ligada à contracultura e à transgressão dos costumes, daquela da luta armada.

A Libelu seduziu centenas de jovens, muitos personagens conhecidos do público atualmente. A corrente teve papel importante na reconstrução das entidades estudantis UNE e a UBES, fechadas pela repressão. E ganhou projeção ao retomar e propagar a palavra ordem do “abaixo a ditadura”, que andava esquecida. O documentário entrevistou vários deles. Era predominante a presença de jornalistas, vindos da ECA, atraídos em massa para a Folha de S. Paulo em sua fase de renovação, início da década de 80,

Sob a direção de Otávio Frias Filho, a redação se transformou num castelo de ex-libelus. Para lá foram Caio Túlio Costa, Matinas Suzuki, Laura Capriglione, Mario Sérgio Conti, Josimar Melo. Eu estava na chefia de redação da sucursal do Rio e me lembro de que diariamente falava com um libelu na sede. Eles estavam em todas as editorias. No Rio tínhamos trotskistas discretos na redação, mas não libelulistas. De onde se pode concluir que este fenômeno foi típico da pauliceia. Também ajustam contas com seu passado rebelde no doc o economista Eduardo Giannetti, os jornalistas Demétrio Magnoli, Paulo Moreira Leite e ex-ministro Antônio Palocci.

O movimento estudantil de 68 formou um grupo privilegiado de jovens atraídos para as organizações de luta armada. Em certo momento, fechadas as portas e possibilidades de uma atuação legal, o embate contra as forças da ditadura passou a ser direto, de armas na mão. O vento forte da revolução social passou arrastando a todos, como se fosse um vendaval. Cristalizou-se a volúpia da certeza, a sensação de que “o apocalipse quer tudo, e tudo imediatamente” como narra um personagem de André Malraux em seu diário sobre a guerra civil espanhola.

Imbuída desta certeza, a carioca Ana Maria Nacinovic foi assassinada aos 25 anos, em junho de 1972, numa emboscada armada por uma milícia doicodiana, em São Paulo. Ana Maria era da ALN, treinada no manuseio de armas, vivia clandestina, e segundo o testemunho dos que a conheceram - peço licença para encadear adjetivos - era belíssima, inteligente, sensível e corajosa. Tinha olhos azuis esvoaçantes. Estudou no Colégio de freiras São Paulo, em Ipanema. Desde cedo aprendeu piano com o professor Guilherme Mignone e cursou a Faculdade de Belas Artes.

Outro jovem com formação política e cultural, amante do cinema, culto e sedutor da geração meia oito foi o líder estudantil Marcos Medeiros. Fez Sociologia na Faculdade Nacional de Filosofia, militou no PCBR. Nas passeatas pelas ruas do centro do Rio, discursava em cima de caixotes ou trepado nos postes. Marcos escapou para o exilio. Passou por Havana e Paris. Trabalhou com o documentarista Chris Maker e foi colaborador e ator de Glauber Rocha.

Aderiu à contracultura e entrou no mundo das drogas. Na volta do exílio caiu em depressão, morreu aos 56 anos. Parte de sua vida está no documentário “Marcos Medeiros: codinome vampiro”, de Vicente Duque Estrada. Não está programando no “É tudo Verdade.”

Jornalista e escritor