CULT, POP & ROCK
Ace Frehley estaria rindo disso
Publicado em 23/10/2025 às 09:09
Alterado em 23/10/2025 às 20:15
Ace Frehley já sem a maquiagem da época do Kiss, mas ainda mantendo a imagem de Homem do Espaço
Foto: Reprodução da capa do álbum Spaceman, lançado em 2018.
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Quando recebi pelas redes sociais, no início da noite de quinta-feira, dia 16, a notícia da morte do guitarrista Ace Frehley, fiquei meio que entorpecido. Naquelas primeiras horas após a tragédia que me abalou e emocionou inúmeros fãs e admiradores do músico, foi como se eu esperasse a ficha cair. E ela foi caindo lentamente, até que, finalmente, desabou e me fez entender que o meu primeiro e principal guitar hero não estaria mais entre nós.
O meu grande amigo Celso Jr. foi a primeira pessoa com quem conversei naqueles primeiros momentos da confirmação oficial da partida de Ace. Admirador do guitarrista como eu, ele também estava abalado. E quando desisti de escrever uma crônica para a coluna desta quinzena para falar de minha forte ligação sentimental e de adoração por Frehley, com receio de que ela ficasse piegas, melodramática e mais melancólica do que o costume, resolvi convidar o Celso para que ele a escrevesse. O resultado está aí abaixo: um texto brilhante, escrito com alma, emoção e coração.

A miniatura de Ace Frehley do fã Celso Jr. que colaborou com a coluna com um ótimo texto Foto: Celso Jr.
Como sempre diz a minha querida amiga jornalista Ana Maria Bahiana, quem é lembrado, vive. E o Spaceman viverá para sempre, ele apenas viajou para outro planeta... de uma outra galáxia distante.
Sigam com o texto do Celso:
A memória prega peças, né? Tenho viva a recordação de ter lido, em algum momento dos longínquos anos de 1990, um texto do jornalista André Forastieri sobre o “Destroyer” na seção “Discoteca básica” da revista Bizz, uma das poucas fontes de informação musical da época. Lembro claramente de uma frase: “há um momento na vida de todo adolescente em que nada é mais importante que o Kiss”. Quer dizer, eu tinha viva essa recordação. Pesquisando para escrever essa coluna, cujo espaço me foi gentilmente cedido pelo querido amigo Cal, descobri que o texto sobre o “Destroyer” era de outro André, o Barcinski, e que essa frase tão marcante não está lá. Se ela foi escrita pelo Forastieri em outra publicação – ou se é fruto da minha imaginação –, não consegui apurar, mas, no meu caso, é a pura verdade.
Eu tinha 15 anos em 1993 e precisei mudar de escola. O colégio anterior ficava a 10 minutos da minha casa em uma direção e o novo, a 20 minutos, mas na direção oposta. A informação parece banal, mas é relevante. Naquele tempo, um adolescente não costumava ter muitos compromissos e um cara tímido como eu, menos ainda. Minha rotina se resumia a ir para a escola, conversar com os amigos do prédio e ouvir música no meu quarto no aparelho de som 3x1 com que todo jovem da minha idade sonhava e que tive a felicidade de ganhar de presente dos meus pais.
O caminho para a escola era feito a pé e, numa dessas andanças, vi o “Creatures of the night” na barraca de um camelô que vendia discos usados na rua. Isso não teria acontecido se eu não tivesse sido transferido (viu só?). Nunca tinha ouvido falar do Kiss, mas aquela capa me enfeitiçou: a imagem azulada dos quatro membros da banda na capa, os olhos brilhantes. Pedi que o vendedor reservasse o disco para mim e passei a manhã inteira pensando nisso. Ao chegar em casa, catei todas as minhas economias – o troco guardado da merenda – e voltei para sacramentar a compra. Eram tempos mais românticos, em que um vinil não custava tão caro como custa hoje e um usado saía por alguns trocados.
Ouvi o “Creatures of the night” incessantemente por dias e me encantei com o guitarrista solo, Ace Frehley. Tempos depois, descobri que ele não havia participado da gravação do álbum, tendo aparecido apenas na foto da capa e no videoclipe de “I love it loud", mas a essa altura eu já tinha encontrado o meu novo colega de turma, Armando, um garoto que metia medo nos outros meninos e encantava as meninas. Mais velho e repetente, ele era a imagem da rebeldia: cabeludo, tocava em uma banda e calçava coturnos que combinavam bem com a calça jeans desfiada e a camisa xadrez que cobria o uniforme do colégio. Além disso, Armando era um grande fã do Kiss e, desfeita a má-impressão inicial, tornou-se meu amigo. Gravou toda a discografia da banda para mim em fitas K-7, que, assim como o meu vinil usado, foram tocadas à exaustão no meu quarto. Armando foi reprovado novamente naquele ano e saiu da escola. Nunca mais o vi.
Ace foi o meu primeiro guitar hero. Seus solos fantásticos embalaram o meu sonho frustrado de ser um guitarrista e muitos momentos especiais da minha juventude. Embalaram também os sonhos de gente como Dimebag Darrel, do Pantera, Mike McCready, do Pearl Jam, Tom Morello, do Rage Against the Machine, Dave Grohl, do Foo Fighters, e muitos outros músicos famosos que, hoje, prestam reverência ao mascarado. A lista de pessoas que compraram uma guitarra por causa de Ace Frehley é imensa e ajuda a fazer justiça a um dos maiores guitarristas do rock, um reconhecimento que durante muitos anos foi negado pela imprensa e pela crítica especializadas, fruto do preconceito que rondava a banda, frequentemente acusada de ser uma mera atração circense desprovida de qualquer talento musical.
O lendário produtor musical Eddie Kramer definia Ace como o coração e a alma do Kiss, e ponderava que ele sempre compensou eventuais deficiências técnicas – Ace foi um autodidata – com muita atitude, criatividade e abertura a experimentações, qualidades que acabaram por render o melhor álbum solo dentre os quatro lançados simultaneamente pelos membros da banda em 1978. A intenção de Gene Simmons e Paul Stanley, fundadores do Kiss, era provar que o sucesso do grupo se devia aos dois, mas deu errado: Ace emplacou o disco mais vendido dos quatro, o mais elogiado e o único que rendeu um hit, a música “New York groove”.
Ace Frehley era um rock star na essência da palavra: um cara que abusou das drogas e da bebida; um inconsequente que levava a vida, a banda e a própria carreira como uma grande brincadeira, num comportamento autodestrutivo que despertava em nós o espírito rebelde que a vida cotidiana nos obriga a reprimir. Boa praça e engraçado, sua risada estridente ecoava em todas as entrevistas que concedia, contrastando com a sisudez dos seus parceiros de banda e nos ajudando a lembrar que as coisas não devem ser levadas tão a sério.
Ace morreu depois de um tombo em que bateu a cabeça. O radialista Eddie Trunk, seu amigo, não deixou escapar a ironia disso tudo no último episódio do seu “The Eddie Trunk podcast”, de 16.10.2025: o guitarrista era conhecido pela dificuldade que tinha para manter o equilíbrio, tanto que um dos álbuns da sua interessante e frutífera carreira solo se chama “Trouble walkin’”. Eddie arremata: saber que morreu dessa forma o teria feito gargalhar.
Entre guitarras incendiárias – no sentido figurado e literal –, máscaras, botas de salto plataforma e fantasias espalhafatosas, Ace Frehley deixa a imagem de um músico inquieto, criativo e, à sua maneira, virtuoso; um artista que formou uma geração de guitarristas que almejavam ser como ele e uma legião de fãs que foi ao espaço e muito além ouvindo a sua música.
Sentiremos saudades.