Cult, Pop & Rock

Por CAL GOMES

CULT, POP & ROCK

Outono gelado com Nick Drake

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Publicado em 28/08/2025 às 13:59

Alterado em 28/08/2025 às 18:22

O primeiro álbum lançado em 1969 Foto: reprodução

Não é exagero comparar a obra musical do inglês/britânico, mas nascido na Birmânia, Nick Drake, com as pinturas do pós-impressionista holandês/neerlandês Vincent Van Gogh. E seria ainda menos exagerada a comparação das vidas trágicas, melancólicas e breves dos dois extraordinários e cultuados artistas, que morreram sem receber em vida os louros gloriosos do sucesso, que só foi alcançado tempos depois. Ambos se foram de forma misteriosa: o pintor, aos 37 anos, assassinado ou por ter se suicidado, em 1890; o músico, em 1974, aos 26, por ingestão excessiva – acidental ou proposital – de tranquilizantes e antidepressivos para que colocasse fim à sua imensa e incessante tristeza.

Os quadros de Van Gogh – o mais expressivo, cultuado e admirado pintor de todos os tempos –, com suas cores dramáticas e vibrantes e seus traços geniais, de pinceladas impulsivas e expressivas, espalhadas por telas mágicas e exibidas por museus e escondidas em casas de bilionários colecionadores, chamaram a atenção não só por seu estilo único, mas pelos temas que transportavam o público para o seu mundo pessoal bucólico, rural, simplório e, principalmente, pela sua mente conturbada.

Não muito diferente do pintor, Nick Drake, genial compositor de folk, cantor de voz morna e violonista de mãos delicadas, ágeis e precisas, nos seus únicos três álbuns lançados, buscava, desesperadamente, o reconhecimento do público e da crítica. Com suas belas canções intimistas, de qualidade musical impressionante e de letras refinadas, de poesia de expressiva sensibilidade, o inglês também possuía uma alma como a de Van Gogh: perturbada, sombria e à procura de luz.

Conheci a curta – mas instigante e potente – obra do maravilhoso músico só na metade da primeira década dos anos 2000, apresentada por uma citação especial na biografia não autorizada do Led Zeppelin, “Quando os Gigantes Caminhavam Sobre a Terra”, escrita pelo jornalista Mick Wall: Jimmy Page, o guitarrista da banda, foi citado pelo biógrafo como admirador de Nick Drake. Em seguida, artigos e matérias na revista Rolling Stone e em inúmeros portais especializados em música me apresentaram as informações iniciais sobre a carreira e a vida do músico, que me conduziram, um pouco mais tarde, a assistir o ótimo documentário “A Skin Too Few”, que me fez chegar ainda mais perto da sua história cheia de beleza e tristeza. E, desde então, além de um apaixonado por sua música impressionante, tornei-me um pesquisador da sua trajetória pessoal e artística como músico e poeta de grande qualidade e do homem melancólico e sensível que esteve entre nós.

Atravessei o gelado outono aqui do sítio, como faço sempre durante essa estação desde que ouvi Nick Drake pela primeira vez, revisitando, quase que semanalmente, os seus três álbuns, além de descobrir e consumir alguns materiais gravados raros, ressuscitados de velhos tapes de estúdios e recém-lançados. Obras-primas que transformaram o músico em uma entidade especial e em um dos artistas mais cultuados nos últimos anos, desde quando, finalmente, foi redescoberto e reconhecido pela crítica e pelo público.

E deixo como dica para os leitores que ainda não o conhecem uma playlist com as minhas quinze canções preferidas. Garimpadas nos seus três únicos álbuns, que, na minha visão, poderiam, facilmente, virar inspiração e trabalho para os pincéis e tintas do mestre Van Gogh.

Five leaves left (1969): o álbum de estreia é o meu preferido de Drake e acaba de receber uma edição com detalhes das gravações no estúdio, com versões e mixagens das canções. Dele, destaco:

1. Time has told me: "Algum dia o nosso oceano vai encontrar a sua praia. Então eu vou deixar aquilo que está me fazendo ser o que realmente não quero ser."

2. River man: "Estou indo ver o homem do rio. Direi a ele tudo que puder sobre a proibição de se sentir livre."

3. Way to blue: "Você pode enxergar uma luz entre as árvores?"

4. Day is done: "Quando o dia chega ao fim, quando a noite é fria, alguns se vão, outros envelhecem só para mostrar que a vida não é feita de ouro."

5. The thoughts of Mary Jane: "E seus anéis brilhantes e coloridos fazem dela a princesa do céu."

6. Saturday sun: "Sol de sábado não virás me ver hoje."


Lançado no início da década de 1970, Bryter Layter possui belos arranjos de cordas Foto: reprodução

Bryter layter (1971): os arranjos para algumas das canções do álbum me lembram os do produtor Rogério Duprat para boa parte dos seus trabalhos com artistas da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes, Gal Costa e do movimento Tropicália, do final dos anos de 1960. Não é coincidência. Joe Boyd, o produtor do álbum, afirmou em uma entrevista ser admirador da música brasileira, principalmente do gênero Bossa Nova. Meus destaques são:

7. One of these things first: "Eu poderia ter sido um marinheiro, poderia ter sido um cozinheiro, um amante de verdade... poderia ter sido um relógio... ou simples como uma chaleira."

8. Haze Jane I: "Você gosta do que está fazendo? Você faria um pouco mais? Ou você vai parar uma vez e se perguntar para que está fazendo isso?"

9. Poor boy: "O quanto é frio crescer e ninguém vê. Quão precários são meus joelhos e ninguém se importa. O quão íngremes são minhas escadas e ninguém sorri."

10. Northern sky: "Eu nunca segurei a emoção na palma da mão ou senti a brisa doce no topo de uma árvore, mas agora você está aqui iluminando o meu céu do norte."

Pink moon (1972): o terceiro álbum de Nick Drake também foi o seu último. Ainda em 1972, ele voltou ao estúdio em Londres para a gravação do que seria o quarto da carreira, mas seu estado mental e emocional já estava bem deteriorado e o músico desistiu, voltando para a casa dos pais em Warwickshire, no interior da Inglaterra, de onde não saiu mais. “Pink moon” foi gravado no final de 1971, durante apenas duas sessões noturnas, de duas horas cada. Um gênio. Minhas escolhidas são:

11. Pink moon: "A Lua Rosa está chegando e é melhor vocês tomarem cuidado. A Lua Rosa vai pegar todos vocês."


A bela capa de Pink Moon, o terceiro e último álbum de Drake. Foto: reprodução

12. Place to be: "Eu era verde, mais verde que a colina. Onde as flores cresciam e o sol ainda brilhava. Agora sou mais escuro que o oceano mais profundo."

13. Things behind the sun: "Por favor, tenha cuidado com aqueles que te encaram. Eles só sorrirão ao te ver quando o seu tempo esgotar."

14. Parasite: "Olhe direito e você poderá me ver no chão. Pois sou o parasita desta cidade."

15. From the morning: "Então veja, olhe a paisagem. As noites infinitas de verão. E vä jogar o jogo que você aprendeu."

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