CULT, POP & ROCK
Rita Lee: Inigualável, incomparável, inesquecível
Publicado em 22/05/2025 às 09:52
Alterado em 22/05/2025 às 09:55

Falar e escrever sobre Rita Lee, mesmo dois anos depois de sua partida, ainda é extremamente difícil para mim. Por alguns motivos. O principal é que muitas das suas canções sempre trouxeram à tona parte das memórias do final da minha infância e adolescência, quando sua música começou a me despertar para sentimentos, antes desconhecidos, dessas duas épocas distintas. Primeiro quando, incansavelmente, ouvia, assim que foi lançado, em 1975, o álbum “Fruto Proibido”, um clássico atemporal que apresenta de tudo um pouco do que ela viveu, vivia e encarnava naquele período de sua juventude: misticismo, drogas lisérgicas, recomeço, amores perdidos, personagens femininos mitológicos, choque de gerações e de costumes ainda vivos pós-movimento hippie e em plena ditadura, que acarretou embates familiares e suas consequentes rupturas.
Um pouco mais tarde, quatro anos depois, o disco “Mania de Você”, que fecha a turbulenta década de 1970, chegava aos meus ouvidos e apresentava a cantora em uma nova roupagem: a de uma mulher mais madura física, emocional e sentimentalmente e que, definitivamente, a introduziu em um universo mais pop, menos rock, mas irreverente, sarcástico e debochado, transformando-a em uma estrela de imensurável grandeza e de inigualável poder no cenário musical brasileiro. Poder que nasceu e cresceu nos perrengues enfrentados para vencer a opressão machista, a do regime militar (censura e prisão), a luta para se livrar das drogas, as falências física e financeira que quase a derrotaram.
Todos esses sentimentos que as imagens e as canções de Rita ainda me trazem também envolvem descobertas e redescobertas constantes de uma sonoridade própria do rock brasileiro, captadas em todas as faixas do espetacular “Fruto Proibido”, às vezes de forma explícitas e outras, escondida nas mensagens impressas no interior do seu melhor trabalho ao lado da banda Tutti Frutti, que me conduziram, décadas depois, à compreensão, quase mística, do quanto a cantora, compositora e instrumentista pairou solene, sublime, poderosa, acima do meio musical de uma época extremamente espinhosa e pesada.
Já no álbum “Mania de Você”, a sensualidade e o erotismo elegante e quase discreto da faixa título, me proporcionaram, naquela fase de minha vida, a visão de uma Rita Lee que eu ainda não conhecia, quando a artista estava vivendo o romance tórrido, intenso, cheio de paixão e amor com o seu parceiro musical e conjugal, Roberto de Carvalho, que fez brotar letras e sonoridades com uma nova pegada, que flertava com temas mais populares e maliciosos. Prato feito e farto para as gravadoras, rádios, programas de auditório e telenovelas.
O outro motivo da minha dificuldade em desenvolver o texto sobre Rita para a coluna é ter a real noção do muito que já foi escrito, falado e registrado sobre a cantora paulistana. Desde o seu início meteórico com os Os Mutantes, sua primeira banda, que a conduziu, como uma flecha flamejante, no meio musical no final dos anos de 1960, e durante toda a sequência da carreira em parceria com o guitarrista e marido, até nos deixar, foram 60 anos de vida artística musical, iniciada em 1963 e finalizada em 2023, com gravações e lançamentos de mais de 20 álbuns, além de várias outras manifestações e trabalhos artísticos no cinema, na TV, na literatura etc.
A base desse texto para a coluna eu escrevi e apaguei na mente várias vezes antes de tomar coragem e começar, para valer, a encarar a tela vazia do notebook. As dúvidas do que seria importante destacar surgiram após ter assistido, no último sábado, ao recém lançado documentário sobre “Mania de Você”, dirigido por Guido Goldberg. Fiquei sem saber ao certo por onde iniciar, como aprofundar e como finalizar. Talvez por um incômodo medo, misturado com insegurança, de que o resultado final pudesse atingir em cheio o que eu não desejava. Pensei em escrever sobre o documentário que conta parte da vida da artista, mas, mais uma vez, o receio e as dúvidas se apresentaram. Elaborar uma crítica sobre um filme cheio de emoção, principalmente as explicitadas pela irmã Virgínia, pelos filhos Beto, João e Antonio, pelo marido Roberto, além de amigos e parceiros musicais, ainda muito fragilizados com a perda de uma pessoa tão importante em suas vidas, seria injusto e, mais tarde, me encheria de remorso.
Ao me preparar para finalizar o texto, senti que não havia conseguido expor com clareza o meu profundo sentimento de amor, carinho, respeito e admiração por Rita Lee sem cair no lugar comum que centenas de outros artigos, matérias e crônicas foram obrigados a utilizar após a sua partida, deixando milhões de fãs e amigos abalados e, principalmente, a família destroçada de tristeza.
A grande saudade de Rita e o sentimento de vazio que ainda me perseguem, claro, não podem ser comparados aos das pessoas que conviveram com ela de forma tão intensa durante toda a sua luminosa vida aqui na Terra, mas não me impedem de escrever esse texto tomado por uma profunda emoção nem de enviá-lo para ser publicado sem as palavras, frases, parágrafos e pensamentos que eu desejei que tivessem melhor acabamento; e que me fazem recordar um pequeno episódio, por volta de 2012, quando a cantora era ativa em uma rede social: puxei conversa, confessando, escrevendo em curtos/longos 140 caracteres, sobre o imenso amor e admiração que sentia por ela. Palavras que fizeram Rita Lee me responder como Rita Lee: "Ah, cara...pode parar."
E finalizo a coluna, depois de tantas lacunas deixadas nesse texto entorpecido, com a letra de Cartão Postal, blues delicado, composto por ela e pelo escritor Paulo Coelho, que está no álbum “Fruto Proibido”, e que ouvi seguidamente no dia em que a imensa e querida Rita Lee nos deixou:
Pra que sofrer com despedida?
Se quem parte não leva
Nem o Sol, nem as trevas
E quem fica não se esquece tudo o que sonhou
Eu sei, tudo é tão simples que cabe num cartão postal
E se a história de amor não acaba tão mal
O adeus traz a esperança escondida
Pra que sofrer com despedida?
Se só vai quem chegou
E quem vem vai partir
Você sofre, se lamenta
Depois vai dormir
Sabe, alguém quando parte é porque outro alguém vai chegar
Num raio de lua, na esquina, no vento ou no mar
O adeus traz a esperança escondida
Pra quê?
Sabe, alguém quando parte é porque outro alguém vai chegar
Num raio de lua, na esquina, no vento ou no mar
Pra que querer ensinar a vida?
Pra que sofrer?