COISAS DA POLÍTICA

Reino Unido e a volta do Estado

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Publicado em 07/07/2024 às 07:47

Keir Starmer assumiu o lugar do conservador Rishi Sunak Foto: Ansa/AFP

Ainda sem a contagem dos votos estar totalmente concluída, Keir Starmer, candidato do Partido Trabalhista (Labour Party), foi nomeado sexta-feira o primeiro-ministro do Reino Unido. Reconhecendo a derrota do Partido Conservador, Rishi Sunak renunciou ao cargo de primeiro-ministro na manhã do mesmo dia. A vitória esmagadora dos Tories (o Partido Trabalhista conquistou 412 assentos, de um total de 650, superando significativamente a maioria necessária de 326) deixou o Partido Conservador com apenas 121 assentos no Parlamento, o menor número desde 1906.

A vitória dos trabalhistas põe fim a 15 anos de domínio dos conservadores, que naufragaram com Boris Jonhson quando manipulou os britânicos para apoiarem o Brexit, que só fez aprofundar a crise do Reino Unido com restrições comerciais perante a União Europeia e a perda da condição de centro financeiro do bloco europeu. Mais do que isso, como ressaltou em seu discurso Sir Keir Starmer, foi uma reação maciça do povo britânico à ausência de prestação de serviços sociais adequados por parte do Estado.

Em outras palavras, é também o fim das ilusões defendidas por Margaret Tatcher. Eleita primeira-ministra em maio de 1979, ela comandou uma radical reforma do Estado, com a privatização de serviços e atividades seculares, em nome da maior eficiência econômica. O Estado passou a pesar menos sobre o contribuinte. Mas, a qualidade dos serviços continuou a piorar (as restrições ao uso do sistema médico inglês, que era modelo e inspirou o SUS, acirraram a má vontade na gestão Sunak) e a falta de escala de produção do Reino Unido – que fez o “harakiri” de abandonar, com Jonhson, a boia de salvação do grande mercado da União Europeia para competir com a mega-escala da produção chinesa – deixaram os súditos do Rei Charles III irados e ilhados.

No outro lado do canal da Mancha, o Eurotúnel segue unindo a França à Grande Albion, mas as decisões políticas neste 2º turno das eleições legislativas, com a perda aparente da ampla maioria conquistada pelo partido Reunião Nacional, da direitista Marie Le Pen, representada pela face jovem de Jordan Bardella. O avanço da direita no continente europeu não é antagônico ao que ocorreu no Reino Unido. São dois lados de uma mesma moeda. E serve de reflexões no Brasil e na América Latina.

Nos países da OCDE (por enquanto o México, o Chile e a Colômbia são os únicos integrantes, o Brasil está com o nome na pedra para exame de cumprir as exigências), a tônica é um estado mais leve mas eficiente na prestação de serviços. O Estado cobra mais tributos sobre a renda e o patrimônio, ao contrário do Brasil e da Argentina, onde a carga tributária recai mais sobre o consumidor, portanto com regressividade do ponto de vista da justiça fiscal. Os ricos, à direita (existem os que têm consciência social e propõem super-tributação sobre os milionários), se insurgem naturalmente contra a intervenção do Estado em sua vida e em seus negócios e aproveitam a perda relativa dos empregos qualificados (resultado da maior concentração da produção de bens de consumo e de bens de capital na China e sudeste asiático), para aliciar trabalhadores desempregados ou que perderam “status” a cerrarem fileiras contra os imigrantes que vêm tomar (por menor remuneração) empregos em atividades que o orgulho nacional se recusa a fazer.

Na Europa e nos Estados Unidos os empregos são ocupados de forma meio informal por imigrantes (legais ou não). Trump e a direita europeia jogam com essa dubiedade e prometem protecionismo, o que é o inverso do liberalismo pregado por Tatcher. Milei está sentindo na pele que o discurso ultraliberal (delirante) não bate com a dureza da realidade que impede a volta da Argentina ao passado glorioso (não só por tudo ter mudado em um século, mas, principalmente, porque a pequena escala da indústria e do mercado do país implica uma enorme dificuldade de redução de custos).

No Brasil, lobbies freiam reforma tributária

Depois de duas semanas em recesso junino para fazer política nos arraiais estaduais, em torno de fogueiras, a classe política retomou parcialmente os trabalhos da Câmara e no Senado. Pena que suas excelências, os nobres deputados(as) e senadores(as), só retomem o batente por mais uma semana. O recesso de julho começa dia 18. Mas, como as duas casas do Congresso só dão expediente em plenário de terça a quinta-feira, os trabalhos se encerram na quinta-feira, 18 de julho, e só voltam para valer na terça-feira, 6 de agosto.

Enquanto os políticos soltavam balões de ensaio sobre seus pupilos nos rincões de seus estados, as cotações do dólar, que subiram em todo o mundo, inclusive pelos temores de rompimento do rito democrático reafirmado por Donald Trump no debate com trôpego presidente Joe Biden pela CNN, foram às alturas no Brasil, alcançando R$ 5,70 na terça-feira, 2 de julho. As pressões externas se juntaram à elevação das incertezas domésticas – em particular no que diz respeito à sustentabilidade das contas públicas. O dólar voltou a cair a partir do meio da semana, após o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, convencer o presidente Lula a reforçar o compromisso do governo com o arcabouço fiscal e anunciar cortes de gastos para 2025, com foco na eliminação de desvios em programas sociais.

O primeiro foco é um pente fino em 800 mil concessões de seguro-desemprego ou afastamento por licença-médica. O INSS devia fazer checagem a cada dois anos. A última foi em 2019. Devido à Covid-19, nada foi feito em 2020 e 2021. Nem pela eleição, em 2022.

Ainda há um grau significativo de incerteza em relação a iniciativas de controle de gastos mais estruturais e, mais urgentemente, sobre qual será o tamanho dos cortes de contingência em 2024, a serem anunciados em 22 de julho. O Itaú avalia que um corte de R$ 20 bilhões seria bem recebido pelos mercados, enquanto valores menores poderiam gerar pressão adicional sobre o dólar. Por isso, o Itaú sugere seguir monitorando possíveis declarações da equipe econômica ou do presidente sobre os próximos passos da política fiscal.

Sai a reforma julina?

Até o recesso, as comissões nomeadas no Congresso para estudar a regulamentação da primeira parte da reforma tributária (que alivia e simplifica os impostos sobre o consumo) vão continuar sofrendo pressões dos diversos lobbies empresariais e de corporações para escapar de maior tributação na regulamentação. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), convocou as comissões a se reunirem dia 8, segunda-feira. Na semana passada, a convocação fracassou. O objetivo agora é fazer com que os deputados voltem para Brasília no começo da semana, com foco nas discussões finais da regulamentação da reforma tributária. A expectativa é que a votação do primeiro projeto e talvez do segundo ocorra na semana que vem.

O grupo de trabalho que analisa o texto principal da regulamentação apresentou seu relatório nessa quinta-feira (4), mas algumas decisões ainda serão tomadas por Lira e pelos líderes partidários nos próximos dias. Essa proposta trata da lei geral da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e do Imposto Seletivo, além de temas como cesta básica e “cash-back”. O governo pediu urgência constitucional para a tramitação desse primeiro projeto. Com isso, a proposta pode pular a etapa de análise em comissões e ser apreciado diretamente no plenário.

Na reta final, os “lobbies” correm à vontade. Com apoio da bancada da bala, os tributos sobre armas foram incluídos nos chamados impostos do pecado, com tributação à margem, juntamente com os carros elétricos, para proteger as montadoras do país contra a invasão dos VE chineses. Enquanto o presidente Lula não conseguiu isentar de carga tributária a carne, para incluí-la na cesta-básica e cumprir a promessa de facilitar o consumo de “picanha e cervejinha” no fim de semana, a associação dos fabricantes de refrigerantes (Afrebras) protesta por ser dos raros segmentos de alimentos e bebidas incluído na lista de ”produtos do pecado”, taxados com mais rigor. Alegam não serem os únicos responsáveis pelo aumento da obesidade da população, que traz sequelas aos consumidores e onera a rede do SUS.

Como se vê, no Brasil, Reino Unido ou em qualquer país, a tributação tem impactos bem amplos. Uma isenção aqui e ali vai levando a carga tributária média da reforma, que estava em 26% a 26,5%, tender a 27% ou mais.

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