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Evandro Mesquita: 'Atuo cantando e canto atuando'

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Por CAL GOMES
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Publicado em 17/07/2025 às 11:13

Alterado em 17/07/2025 às 11:54

Evandro Mesquita com as 'backing vocals' Andréa Coutinho e Nicole Cyrne Foto: Guilherme Leite/divulgação

Durante os longos 21 anos da ditadura militar que assustou e perseguiu a sociedade brasileira, a classe artística, ao lado dos veículos de comunicação, talvez tenha sido a mais patrulhada e censurada pelos órgãos de repressão instalados pelo regime. E, certamente, nenhuma obra musical deixou, para aquela geração dos anos de 1980 e as seguintes, uma marca tão clara, visível, explícita dessa truculência, do que "As Aventuras da Blitz", primeiro álbum da banda carioca, de 1982. Nas duas últimas faixas estão lá, fossilizadas nos velhos LPs lançados na época, os arranhões como provas incontestáveis de que os censores não queriam que o público ouvisse: “Cruel, cruel esquizofrenético blues” e “Ela quer morar comigo na Lua”, canções que a gravadora precisou riscar manualmente, uma a uma, dos primeiros 30 mil discos de vinil que já tinham sido prensados e que, só mais tarde, foram disponibilizadas no formato CD.


Evandro Mesquita incansável em mais uma tour com a Blitz: 'Viemos do underground, das portas fechadas, e soubemos arrombá-las' Foto: Rafael Catarcione/divulgação

Mais de quatro décadas após essa tenebrosa experiência que a Blitz encarou, mas que não impediu o estrondoso sucesso do seu primeiro álbum, conduzido pelo imenso sucesso de “Você não soube me amar”, a banda continua firme e forte na ativa e acaba de lançar seu novo trabalho: “NuDusOutros”, álbum de covers e releituras de algumas das canções que, durante anos, "fizeram a cabeça" de Evandro Mesquita e cia: "É uma homenagem a compositores, músicos e músicas que nos inspiraram e continuam fazendo parte da nossa memória musical e afetiva", define o cantor e líder do grupo que, nesta entrevista exclusiva para o JORNAL DO BRASIL, entre os jogos do seu tricolor das Laranjeiras nos EUA e o início da nova turnê com a Blitz. “Agora é a hora”, fala sobre esse novo álbum, de todos estes anos na estrada, de censura, da sua vida artística de sucesso como cantor e ator e da música atual: criada, lançada e consumida.

 

JORNAL DO BRASIL: A Blitz acaba de lançar um novo álbum, “NuDusOutros”, com 8 canções, covers e versões de artistas diversos da música brasileira, como Gilberto Gil, Belchior, Paulo Diniz, entre outros, além do maior sucesso da banda, “Você não soube me amar”, com uma "pegada" jazz. O que motivou vocês a lançarem esse trabalho, dando uma nova roupagem a sucessos do passado?

Evandro Mesquita: Foi ['NuDusOutros'] um disco gravado durante a pandemia. Billy (n.r.: Billy Forghieri, tecladista) e eu ficávamos no estúdio tocando e lembrando canções da nossa memória afetiva, colorindo e bordando essas canções que de alguma forma nos inspiraram. Convidamos músicos remotamente para participarem. Me orgulho muito do trabalho que fizemos. As pessoas têm curtido e comentado bastante.


NuDuSoutros - Álbum de covers da Blitz lançado no início de julho Foto: Reprodução

Duas canções do novo álbum, “Solidão galopante” e “Um sonho”, além do grande sucesso de Erasmo Carlos, “Sentado à beira do caminho”, me fizeram lembrar de um dos maiores hits da Blitz, “A dois passos do paraíso”, uma canção de estrada, country, que conquistou também um público mais rural. Mas, mesmo antes de a banda ter atingido esse público específico, ela já tinha conquistado milhares de ouvintes pelo interior do país, mesmo com todo esse seu perfil urbano, praieiro, de forte sotaque carioca. Você acha que, diferente da bossa nova, que também foi marcada por um estilo mais local, carioca-zona sul, você e a Blitz conseguiram romper parte dessa barreira bairrista que existe em algumas regiões do país?

Pois é… o Brasil é tão grande e tão rico musicalmente. Nosso país faz música boa de vários estilos. Assim como muitas músicas ruins em vários estilos também. Mas a verdade é: quem não gostar da boa música, de qualquer estilo, “bom sujeito não é! É ruim da cabeça ou doente do pé.”

 

Uma boa parte dos artistas musicais, principalmente os que criaram e comercializaram suas obras até 2011, ano em que o surgimento de aplicativos de venda e reprodução de álbuns e músicas transformou radicalmente o mercado fonográfico, tem feito duras críticas a esse mercado e aos seus consumidores. Há quase uma unanimidade de que existe um comportamento que envolve muita displicência e preguiça, principalmente dessa nova geração de executivos das gravadoras e do público ouvinte. Existe uma forte percepção de que muitos deles hoje em dia ouvem música pela metade, de forma apressada, e que ela está se transformando em algo descartável, diferente de antigamente. Você tem sentido, observado, também essa tendência de boa parte do público atual?

Poxa… pois é. E eu ainda sinto muita saudade dos LPs. Do cheiro, da capa, das fotos da contracapa, da ficha técnica, das letras… do barulho da agulha no disco e a agradável sensação de viajar em cada faixa do trabalho do artista ou da banda. Sinto saudade das horas que a gente passava garimpando as lojas de disco, das descobertas e da ansiedade pelo novo álbum de uma banda ou artista. Ao mesmo tempo, é sensacional a rapidez e a facilidade de achar o trabalho de qualquer um o mundo... mas sinto saudades dos LPs.

 

'Ainda sinto muita saudade dos LPs.

Do cheiro, da capa, das fotos da contracapa,

da ficha técnica, das letras…

do barulho da agulha no disco...'

 

Em uma cena de “Homem com H”, a recém-lançada cinebiografia de Ney Matogrosso, ao ser indagado por um amigo, elogiando a sua voz, o que ele deveria cantar, Ney, muito tímido e inseguro, ainda sem saber qual caminho seguir, responde: "Eu sou ator e não cantor". Você iniciou sua vida artística como ator e, mais tarde, quando formou a Blitz, foi assumindo sua carreira como cantor e continuou atuando. Você se considera MAIS um cantor, músico ou um ator?

Sou “arteiro” e me alimento de todas as vertentes da arte. Atuo cantando e canto atuando.

 

E nos shows, sozinho ou com a Blitz, como você mais se vê, como cantor ou ator?

Procuro usar tudo o que sei e o que sou para interpretar aquela canção ou aquele personagem. Busco referências que tive e que vivi na arte e na vida. Como eu disse, canto atuando.

 

Nestes mais de 50 anos de vida artística, misturando o cantar com o atuar, você chegou a calcular o quanto já trabalhou como músico – lançando discos, fazendo shows – e como ator – trabalhando em peças de teatro, filmes, novelas, seriados de televisão? Se sim, conseguiu chegar a um número final que responda essa dúvida?

Nunca fiz essa conta, mas sempre procuro fazer, e tirar, o melhor de cada experiência e me colocar inteiro nelas. Tive grandes mestres e parceiros que me fortaleceram muito nessa caminhada na música e no teatro. A estrada com a banda é quase semanal. Enquanto tiver prazer e saúde, sigo nessa viagem com dedicação e amor.

 

Durante todos estes anos cantando em shows e estúdios e interpretando personagens no cinema e na TV, você faz algo em especial para manter a voz e a memória saudáveis?

Sim… agora faço mais a sério os exercícios para aquecer a voz e o corpo. Ajuda muito. É fundamental. E também ter um belo teleprompter. Uma conferida ajuda bastante em um set list com mais de 40 anos de estrada. 


Blitz com álbum novo Foto: Lyra Jr./divulgação

Voltando ao Ney Matogrosso, em uma entrevista ao Canal Brasil, ao ser perguntado sobre a geração em que foi formado como cidadão e artista, dos anos 1960 e 1970, se ele achava que ela tinha conseguido transformar aqueles sonhos de um mundo melhor em realidade, ele foi incisivo ao dizer que não. E você, acha que aqueles sonhos da sua geração, que é a mesma do Ney, também não foram concretizados como ela queria?

Concordo com o Ney… sempre. Depois de tudo que vivemos nos anos 1960 (peguei um pouco), 1970, 1980, com fim de guerras, queda do Muro de Berlim, fim da censura, da ditadura… achava que o mundo entraria numa onda melhor de paz, amor, solidariedade e justiça social, como a maioria das mensagens das peças, filmes, canções e arte dessa época. Um dos meus mestres de teatro e vida, Ivan de Albuquerque, do Teatro Ipanema, dizia que, de uma certa forma, éramos privilegiados de estar vivendo o "apocalipse". A arte, a música, sempre foram instrumentos fundamentais para o homem entender o mundo, né? Desde os desenhos nas cavernas. Triste ver pessoas que viveram essa época não enxergarem possibilidades e atitudes com mais sintonia e harmonia que vislumbrávamos nos anos 1970!

 

'Achava que o mundo entraria numa onda melhor de paz,

amor, solidariedade e justiça social,

como a maioria das mensagens das peças,

filmes, canções e arte...'

 

Você iniciou a sua vida artística no início dos anos de 1970, na fase mais barra pesada, truculenta, da ditadura militar. No grupo teatral “Asdrúbal trouxe o trombone”, sofreu com a vigilância social, política e policial. Mais tarde, quase no fim do regime, no primeiro álbum da Blitz, em 1982, a censura ficou muito bem explícita naqueles riscos que a gravadora foi obrigada a fazer, manualmente, nas duas últimas canções gravadas nos vinis após eles já terem sidos prensados. Decisão radical imposta pelos órgãos de censura do regime. Como você agia e reagia pessoalmente durante todos aqueles anos e nessas ocasiões de autoritarismo?

Sempre lutei para viver num mundo melhor. Achava que tinha encontrado minha tribo. As primeiras tatuagens, as descobertas de lugares especiais no Brasil. Buscava alternativas de vida de uma maneira especial e prazerosa. Descobria o mundo nos filmes, no teatro, nos mestres, discos, livros, músicas, diretores, atrizes, atores antigos e atuais. Acredito que a arte é uma arma preciosa para um prazer sublime.

 


'As Aventuras da Blitz' - Vinil riscado do primeiro álbum da banda, de 1982, a mando da censura Foto: reprodução

Mesmo no retorno da democracia, a partir de 1985, você e sua banda, em alguns momentos, se sentiram pressionados com algum tipo de censura?
Acho que não. Viemos do underground, das portas fechadas, e soubemos arrombá-las. Dá um certo prazer cantar as músicas que foram censuradas e falar sobre a censura da época porque crescemos na contramão. Tudo era perigoso e tudo era “divino e maravilhoso”.

 

'Viemos do underground,

das portas fechadas,

e soubemos arrombá-las'

 

Quais as canções da Blitz de que você mais gosta?

“Você não soube me amar”. O nosso “pé na porta”, o cartão de visitas. “A dois passos do paraíso”. Emoções à flor da pele do fundo do poço. A cinematográfica “Weekend”. “Mais uma de amor, geme geme”. Suingada reggae-xote na veia. A teatral “Ego trip”, que acaba em um sambão. Gosto de várias "lado B" também, como “O beijo da mulher aranha”, “O romance da universitária otária”; “Cruel cruel esquizofrenético blues”; “Última ficha”; “Vítima do amor”.

 

'Tudo era perigoso

e tudo era 'divino

e maravilhoso'...'

 

E o personagem que você mais gostou de interpretar como ator?

Sérgio, em “Os Normais - O filme” e o Paulão da Regulagem, em “A grande família”.

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