CINEMA

'Madalena', de Madiano Marcheti, faz sucesso em San Sebastián

Embora não esteja na competitiva oficial, o Brasil está representado na Mostra 'Horizontes Latinos'

Por MYRNA SILVEIR BRANDÃO

Publicado em 24/09/2021 às 13:06

O diretor Madiano Marcheti Foto: divulgação

O Festival de San Sebastián divulgará nesse sábado (25) os premiados de sua 69ª edição. Embora não esteja na competitiva oficial, o Brasil está representado na Mostra “Horizontes Latinos” com “Madalena”, de Madiano Marcheti. É o único título totalmente brasileiro, já que os outros dois são coproduções: “El Empleado Y El Patrón”, de Manuel Nieto Zas (Uruguai/Argentina/França/Brasil), e “Noche de Fuego”, de Tatiana Huezo (México/Alemanha /Qatar/Brasil).

“Madalena” teve première no Festival de Roterdã, venceu os Festivais de Istambul e Inffinito Film Festival, e participa nesta edição do San Sebastián, que é considerado o evento de cinema de língua espanhola mais importante do mundo.

A trama começa com o corpo de uma mulher trans encontrado nos campos de soja no meio da plantação. Os investigadores – que estavam em intensa procura por Madalena – descobrem tratar-se da desaparecida.

Embalada por onipresente tensão, a narrativa se constrói a partir de uma figura ausente e 3 protagonistas: Luziane (Natália Mazarim), Cristiano (Rafael de Bona) e Bianca (Pâmela Yulle), amiga da falecida e também trans.

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Pâmela Yulle em cena de 'Madalena' (Foto: Guilherme Tostes/divulgação/Pólofilme)

Eles não têm quase nada em comum, além do fato de todos morarem na mesma cidade rural no oeste do Brasil, estado de Mato Grosso do Sul. Além disso, não tem ligações entre si e são egressos de realidades socioculturais diferentes. A conexão entre eles se estabelece através do verdadeiro mote do filme que é a morte de Madalena. Em diferentes partes da cidade, cada um à sua maneira reage à ausência dela.

O longa foi produzido pela Raccord Produções e Pólofilme, esta última Produtora independente de cinema e conteúdo audiovisual criada pelo cineasta Joel Pizzini (“Zimba”, “Rio da Dúvida”, “Enigma de um Dia”). É coproduzido pela Viralata e tem apoio do Governo de Mato Grosso do Sul.

O filme é excelente e pleno de pontos altos. Um deles, pelo inusitado de iniciar a trama com a morte da protagonista (ou seja, ao invés de sua presença, sua ausência), o que é sempre arriscado. Se não for realizado por mãos talentosas, pode ter influência na identificação da personagem com os espectadores. Vale lembrar que o genial Alfred Hithcock correu esse risco quando realizou o clássico “Psicose”, no qual a protagonista Marion Crane (Janet Leigh) é assassinada no início. Na época, a decisão do mestre do suspense foi muito comentada, mas o filme foi e continua sendo um sucesso mundial.

Como tudo leva a crer, acontecerá também com “Madalena”. As sessões do filme em San Sebastián foram realizadas com lotações esgotadas, muitos aplausos ao final e grande interesse nas Q&A (Perguntas e Respostas).

O diretor, nascido em Porto dos Gaúchos (MS), em 1988, ainda na universidade, começou a dirigir curtas-metragens que fizeram sucesso em vários festivais nacionais e internacionais. Em 2013, “Vácuo” e “Travessias”, ambos exibidos no Kinoforum (SP). Em 2014, “O Lugar mais frio do Rio”, incluído em Cinélatino – 27èmes, Rencontres de Toulouse (FR) e menção honrosa na VII Janela Internacional de Cinema. E em 2016, “Essa Barra que é Gostar de Você”, que abriu o Festival Mimo de Cinema e Música.

Leia a seguir a entrevista exclusiva que Marcheti deu ao JORNAL DO BRASIL.

JORNAL DO BRASIL: Sabemos que em qualquer projeto há sempre uma motivação mais forte para realizá-lo. No caso de “Madalena”, qual foi?

MADIANO MARCHETI: A ideia do filme nasceu do desejo de refletir sobre questões específicas da minha região de origem, que ainda é pouco representada no cinema e não muito conhecida mesmo dentro do Brasil. Venho do norte de Mato Grosso, uma região da fronteira agrícola brasileira que passou por muitas transformações nos últimos 60 anos. Durante a ditadura militar, nas décadas de 1960 e 1970, o governo patrocinou campanhas massivas incentivando que famílias migrassem para o sul da Amazônia com o intuito de povoar a região e criar ali um polo econômico agropecuário. Tenho plena consciência de que eu e minha família somos resultados desse processo migratório recente. E, embora eu tenha orgulho das minhas origens, não há como não reconhecer que o modelo de desenvolvimento aplicado à região teve consequências devastadoras para a população indígena local, bem como para o meio ambiente, além de ser dolorosamente desigual. Assim, “Madalena” sempre foi essencialmente um filme sobre um lugar, sobre o lugar de onde venho, e sobre como sua recente metamorfose afetou a paisagem natural e as pessoas que ali vivem. Mas também é um filme sobre um tipo diferente de “lugar”; ou seja, sobre a experiência de ser uma pessoa LGBTQIA+ nesta parte do Brasil. No Brasil, as pessoas trans são assassinadas com uma frequência chocante. Dentro do espectro de violência contra as populações LGBTQIA+, elas são sem dúvida nenhuma as mais atingidas. Dado meu objetivo de refletir sobre os impactos das dinâmicas sociais opressivas sobre a expressão de gênero e sexualidade naquela região, parecia evidente a importância e a urgência de focar na experiência das pessoas trans.


Seus filmes têm sempre uma forte identificação com os espectadores. Qual o segredo, digamos assim, para conseguir isso, como está ocorrendo também com a ótima receptividade a “Madalena”?

Tem algo de estranho na estrutura de Madalena que inquieta e interessa muitas pessoas que o assistem. É o que tenho sentido desde que o filme estreou no início do ano no Festival de Roterdã. A forma como o filme é construído oferece um lugar de agência poderoso aos espectadores. É uma narrativa cheia de sugestões e indícios, bastante aberta. Ao construir o filme dessa forma, torço para que o espectador me ajude a construir essa história, a pensar sobre o passado e o futuro das personagens e a resolver pontas soltas do mistério que se estabelece no filme. Quando o espectador aceita esse pacto, sinto que o filme pode acabar tendo algum impacto. Sobre o ponto de vista da crítica, de modo geral, o filme tem sido muito bem recebido. “Madalena” tem uma estrutura narrativa incomum, citada por alguns como arriscada, mas isso tem sido um ponto forte para a crítica. A maneira como o filme se debruça sobre os temas da transfobia e da degradação ambiental, fugindo a padrões estruturantes da narrativa clássica e também dos estereótipos de representação das pessoas trans. Algo que acho curioso em algumas reações é que algumas vezes a personagem Madalena é tomada como prostituta, sendo que não há nenhum indício no filme sobre qual seria o trabalho dela. Creio que essa leitura se dá porque muitas pessoas associam as pessoas trans e as travestis com a prostituição. Embora o filme não defina qual era a profissão de Madalena, não tínhamos em mente que esse era o trabalho quando escrevemos o roteiro. Acho curiosa essa leitura por parte de alguns espectadores ou jornalistas, pois revela muito do preconceito enquanto sociedade em relação ao universo tão diverso das pessoas trans.

Você tem uma participação grande com os curtas-metragens em festivais nacionais e internacionais. Agora, com seu primeiro longa, qual resultado espera em San Sebastián?

Espero que a participação no Festival de San Sebastián ajude a dar fôlego na carreira do filme para que ele possa passar por mais festivais ao redor do mundo e também para que tenha uma boa estreia no Brasil ainda este ano, se possível. Também espero que isso ajude a pavimentar o caminho para que eu possa fazer meu próximo longa em breve. Mas o mais importante, torço para que a participação de “Madalena” em San Sebastián contribua para atestar a força que o cinema brasileiro tem. Apesar de todos os ataques, da busca pela concretização de um projeto deliberado de corrosão e destruição das instituições de fomento à cultura no Brasil, por parte do atual governo federal, o cinema brasileiro resiste e existirá.

Tem algum novo projeto em mente?

Sim, estou trabalhando no meu próximo projeto atualmente. Um filme que também se passa na região Centro-Oeste do Brasil, mais especificamente no norte de Mato Grosso, região de onde venho. Quero trabalhar esse sentimento de delírio coletivo pelo qual vivemos no país desde que as tendências ultraconservadoras que circulam na esfera pública tomaram conta da vida cotidiana do brasileiro com certa naturalidade. Será um filme misterioso e onírico. Tem como protagonistas uma mulher que está entrando na terceira idade e um morro ao lado do vilarejo onde ela vive na região amazônica. Passa-se em um Brasil turbulento e surreal - em que tudo parece perturbadoramente possível.

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