CAIO BUCKER

Tudo vira nada quanto tange o entendimento

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Por CAIO BUCKER

Publicado em 17/02/2022 às 09:19

Alterado em 17/02/2022 às 09:19

Caio Bucker JB

O ano era 2005. Eu tinha 15 anos e participava de um projeto multiartístico chamado Geringonça, no Sesc Tijuca. Me tornei um dos mestres de cerimônia do evento, e apresentava shows, esquetes teatrais, poetas e performers, tudo da forma mais democrática e fluida possível. Tive a oportunidade de conhecer grandes ícones, e alguns se tornaram amigos da vida e da arte, como Jards Macalé, Baia e ele: Zéu Britto. Lembro exatamente do dia que o Zéu se apresentou. Já nos falávamos por email, e eu já ouvia seu primeiro disco, “Saliva-me”, direto. Aliás, o show era desse disco, um porradão de sucessos com o rock baiano bem humorado que só ele sabe fazer. Mas foi a primeira vez que íamos nos ver pessoalmente. Cheguei no Sesc, estavam numa reuniãozinha para falar do show, que teria abertura de uma banda chamada “Sol na Garganta do Futuro”. Que nome! A cara dele. Nos vimos, nos cumprimentamos rapidamente, e fui me preparar para o show. Resolvi colocar um blazer despojado e um nariz de palhaço, em homenagem às aulas de clown e ao Zéu, que tem um tom clownesco na vida e na arte. Chegou a hora! Fui até a beira do palco e disse: “O hálito roça o dente, o dente roça o pelo, o pelo roça a pele, a pele roça o corpo, o corpo roça a alma, e a alma roça o mundo. E esse negócio de alma na alma é profundo! É o téte no téte, debaixo da Lua, da noite, do Sol, da manhã, da bomba nuclear. Eu só quero um amor e um lençol. O mundo pode acabar!” Zéu Britto.

 

Macaque in the trees
Zéu Britto em ensaio para o projeto Sem Concerto (Foto: Foto: Julia Assis/divulgação)

 

Sim, essa foi a apresentação. Saí do palco, entrei na coxia e Zéu estava ali, a postos e emocionado que eu sabia um de seus poemas. Demorou pra cair a ficha que era minha forma de apresentar, leve, suave mas com tônus e muita emoção. Ele entrou, fez um show de lavar a alma, e foi embora. Alguns anos depois, nos reencontramos no teatro, em dois espetáculos marcantes para mim: “Camila Baker” e “Decameron”. Logo depois, eu estava em cartaz, na época ainda como ator. Era aquele sucesso que já falei anteriormente, “Garotos”, que ficou 4 anos em turnê pelo país. Um dia fomos nos apresentar em Jequié, terra baiana de Zéu. Escrevi para ele que estávamos indo, pedindo uma força na divulgação e umas dicas na cidade. Foi ótimo! Aliás, foi justamente a cidade onde eu, estabanado que sou, bati a porta do camarim e não vi que não tinha maçaneta. Ficamos presos ali por um tempo, a plateia esperando sem entender nada. Tinha que ser na cidade de Zéu, essa figura ímpar cheio de histórias. Comigo inclusive. Tem uma que eu gosto tanto que até rendeu uma música. Era uma simples manhã de sol na praia em Salvador, nós dois comendo água (ou tomando cerveja). Sol quente na cabeça, olha a onda, e dois bichos caminhando juntos na areia. Um siri e um caranguejo. Zéu soltou: “vai rolar uma ousadia no fundo do mar”. Pronto, a canção já estava ali.

Os anos se passaram, perdemos um pouco o contato, mas o carinho e a admiração continuaram firmes e fortes. Soube de um bar que ele abriu em Santa Teresa, cheguei a ir de surpresa visitar, mas ele não estava. Depois soube que ele estava morando em São Paulo, e fazendo uma peça no Rio. Fui assistir numa noite serena, e depois tomamos um chopp na Cinelândia. Falamos da vida, dos projetos e de planos futuros. Ali já era o ano de 2016, e Zéu acabara de gravar um álbum, o belíssimo “Amor de Montar”, que era um disco com um livro de seus poemas. Ganhei um exemplar, ouvi, fiquei louco naquilo e voltei na semana seguinte. Ele me indagou: “Meu amigo, você toparia produzir o lançamento deste disco?” Claro! Mas é óbvio que sim. Meus planos eram maiores, mas um passo de cada vez. Fechei a pauta, organizei tudo e meses depois tivemos a tal noite histórica num palco sob o luar de Copacabana. Memorável! Sentimos que aquela parceria estava só começando. Nossa amizade então, nem se fala. “Zéu, quero ser seu produtor e empresário, topa?” Ele deu a resposta que eu tinha dado anteriormente: “Claro! Mas é óbvio que sim.” Pronto, negócio fechado. Fui passar um tempo com ele em São Paulo, e descobrimos uma coisa em comum: as noites de insônia e fritação. Parece que as ideias esperam o anoitecer e vêm com força total.

Numa dessas noites, entre vinhos e violões, músicas, histórias e poemas, surgiu a ideia de um solo de humor. “Delírios da Madrugada”, esse era o nome do projeto, não tinha jeito, o nome só podia ser esse. Chamávamos carinhosamente de um “stand-up melody”, pois era uma mistura de tudo com as músicas de Zéu. Criamos em semanas, estreamos no Rio e seguimos em turnê, que durou quase 3 anos. Recebemos 4 indicações ao Prêmio do Humor, e o principal: muitas histórias engraçadas. Eu diria que histórias improváveis de acontecer. Junto disso, outros projetos paralelos, séries, filmes e um show novo. Em 2020, antes da pandemia, lançamos o “Sem Concerto”, onde ele é acompanhado por uma banda formada apenas pela gênia Natália Carrera, que se diverte entre guitarra, violão, bandolim, teclado, sintetizador e percussão. Começamos o ano com a agenda cheia, mas com a pandemia, aquele hiato para o retorno. No final do ano passado, em parceria com a Musickeria, gravamos o EP deste show, com 5 faixas inéditas e 2 poemas. Será lançado em breve, e olha, que trabalho bonito de se ver! Irei divulgar aqui no JB. Aliás, descobri que ele me lê semanalmente. Vai ver que é por isso que tenho usado suas ideias em meus títulos. Desta matéria, por exemplo.

Eu resolvi contar essa história toda por vários motivos. Mas o principal deles é registrar minha parceira, meu amor, minha amizade e admiração por Zéu Britto. Somos tão conectados na vida e na arte que já me confundiram algumas vezes com ele. Já chegou ao ponto de tirarem foto comigo e marcarem ele no instagram. Sábado agora, dia 19, é seu aniversário. Ele está em Porto Alegre gravando uma série, vai passar a virada sob câmeras e holofotes, da forma que mais gosta. Empresariar e viver a empreitada artística com ele é uma alegria sem fim. E uma honra também. Ele me ensinou que o que não se lê, o que não se vê e o que não se crê, é umidade querendo poesia. Ensinou também que a palavra é fortíssima! De faca a língua ela esmaga, pois tem muitas toneladas: toca e complica, seca e multiplica, letra e canções, chora e ensina, e ainda converte em sina os corações. A palavra nos livros é como água nos poços, e a palavra na gente é como carne nos ossos. Me fez um relato de insatisfação, e ai de algum estabelecimento que ofereça a ele uma coxinha com catupiry falso! Soraya virou um marco nessa vida, mas ainda não entenderam que sua metáfora é mais forte que a letra, e queimar o filme é só uma questão de ser. Seu verbo é absurdo, são canaletas por onde escoam águas, fezes, frustrações e palavras. Vem como um forte golpe de sol, seca o fluxo e racha o cimento. Aí cai a tempestade do texto. E tudo vira nada quando tange o entendimento.

 

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