CAIO BUCKER

Como seria nos dias de hoje?

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Por CAIO BUCKER

Publicado em 13/01/2022 às 09:03

Alterado em 13/01/2022 às 09:03

Caio Bucker JB

Eu gosto de coisas antigas. Músicas antigas, lugares históricos, relíquias e raridades. Um brechó de memórias poderia ser meu fantástico mundo da imaginação. Entrei no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e pensei nisso: que coisa mais linda, que energia! Imagina viver numa época assim? Devia ser o máximo. Às vezes sinto saudades de coisas que eu não vivi. Ou vivi, mas isso é outro assunto. Sempre que me deparo com algo cheio de histórias, eu fico curioso e à vontade. Acho que é isso: a história. E também a experiência. Digo isso porque não tenho alma de colecionador, não. Vou corrigir o início deste texto, então: eu gosto de coisas que carregam histórias. É a memória dos seres! É isso que me encanta, e me deixa com a alma velha. Alguns amigos dizem exatamente isso, que eu tenho a alma velha. Deve ser o meu respeito pelo tempo. Bem, é perceptível que o fenômeno da cultura retrô tem crescido e ganhado adeptos cada vez mais. Pessoas que se conectam com o passado e o espírito vintage. Mas não é o meu caso. Vou repetir: meu lance é com a história.

 

Macaque in the trees
O dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues (Foto: José Antônio/CPDoc JB)

 

Seguindo meu ritual, coloquei um álbum da Nara Leão e comecei a pensar em algumas vozes que não estão mais entre nós. Cartola, Nelson Cavaquinho, Baden Powell, Caymmi, Elis, João Gilberto, Tom e Vinícius. Parece que fazem parte de uma mesma tribo. Imagina que legal viver na época deles? Teriam muita coisa para contar hoje. Me lembrei também do Nelson Rodrigues, um dos maiores e mais revolucionários dramaturgos do país, que ajudou a inaugurar uma nova era no teatro brasileiro. Dia desses falava de Nelson, e me questionaram: mas será que ele daria certo nos dias de hoje? Olha, pela sua genialidade e pela sua forma direta e rasgada de expor temas considerados tabus, de mostrar a marginalidade e certa podridão da sociedade sem fazer cerimônia, acho que sim. Sempre foi polêmico, ousado e radical, e diria que um profeta dos tempos atuais. Claro que estamos falando de outra época, de outra linguagem, de outras questões. E também de outra sociedade. Aí eu volto para meu apreço por coisas antigas, e penso: como seria nos dias de hoje? Não que isso seja relevante.

Como sempre cito Belchior, um dos meus favoritos, vamos lá. Ele diz que “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Essa música (“Velha roupa colorida”) é um verdadeiro hino sobre a dialética do tempo e da mudança social, que ao mesmo tempo reciclam o velho como novo e descartam o velho como velho. A mudança, que pode ser sorrateira e discreta, e “o novo” são temas presentes em sua obra. O próprio sucesso “Como Nossos Pais” fala sobre a reprodução de costumes e formas de viver de nossos pais, e afirma que o novo sempre vence. Eu concordo com tudo isso, mas também acredito na riqueza da experiência. Walter Benjamin questionou em seu texto “Experiência e Pobreza”: “Qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” Ficamos pobres. Abandonamos todas as peças do patrimônio humano e tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do “atual”. Penso que articular historicamente um passado não significa conhecê-lo tal como de fato ele foi, e sim apropriar-se de uma recordação, e como ela relampeja neste momento.

Essa comparação de uma época com os dias de hoje tem sido recorrente comigo, principalmente diante da política do cancelamento. Além de Nelson, já me questionaram sobre Bukowski, Torquato Neto, Raul Seixas, Chico Anysio, Mamonas Assassinas e até da série Friends, sempre com um “mas será que daria certo ou teria espaço nos dias de hoje?” Chico Buarque está aí, com Geni e o Zepelim. E aí? Sinceramente, eu não sei. Estamos falando de momentos. É um outro período histórico com outros temas, outras situações e tecnologias. Todos estes que citei acima foram gênios de sua geração, isso é indiscutível. Com a informação pulsante nos dias de hoje, é claro que se combate mais facilmente certas pautas, verborragias ofensivas e agressivas. Mas que levemos em consideração a intenção e a ironia que, suponho eu, tiveram estes em seus momentos. É importante andar para frente e progredir, carregando a bagagem de memórias que podemos ter acesso. O próprio Benjamin destacou: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de tempo de agora.” E isso tudo tem um faro para o atual, onde quer que ele se oculte na folhagem do antigamente.

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