CAIO BUCKER

Lugar de fala

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Por CAIO BUCKER

Publicado em 09/12/2021 às 08:31

Alterado em 09/12/2021 às 08:34

Caio Bucker JB

O termo “lugar de fala” está presente em diversos contextos e situações. Recentemente, aconteceu um fato relacionado a um filme nacional que o lugar de fala se fez presente, e com um debate de extrema importância. Antes de entrar nesse assunto, é importante recapitular o termo em questão. O conceito representa a busca pelo fim da mediação, ou seja, o protagonista do tema em questão fala por si, com sua própria luta e movimento. Historicamente, foi bastante usado por Pierre Bourdieu e Michel Foucault. Hoje em dia, também pelas pensadoras Judith Butler e Djamila Ribeiro. Aliás, a própria Djamila, em seu livro “O que é lugar de fala?”, enfatiza o lugar social ocupado pelos sujeitos numa matriz de dominação e opressão, dentro de relações de poder. Seria um reconhecimento do caráter coletivo que rege as oportunidades e constrangimentos que atravessam pessoas de determinado grupo social e suas experiências individuais. Uma matéria no jornal Nexo definiu que “é um mecanismo que surgiu como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados em espaços de debate público. Ele é utilizado por grupos que historicamente têm menos espaço para falar. Assim, negros têm o lugar de fala - ou seja, a legitimidade - para falar sobre o racismo, mulheres sobre o feminismo, transexuais sobre a transfobia e assim por diante.”

 

Macaque in the trees
Foto de Clay Banks/Unsplash, usada em matéria no site Politize! (Foto: reprodução)

 

Bem, o fato que chamou atenção nos últimos dias foi a respeito do filme “Amor sem medida”, da Netflix, estrelado por Leandro Hassum e Juliana Paes. O ator interpreta um anão que enfrenta dificuldades ao se relacionar com uma mulher mais alta. Fato é que este é mais um caso de crip face, termo usado quando um ator ou atriz sem deficiência interpreta alguém deficiente. A atriz Juliana Caldas fez uma declaração congruente em suas redes: “Estamos vivendo em um mundo estranho. Cada vez mais vejo a individualidade aumentando. Difícil escrever sobre esse tema do vídeo, porque me dói. Ter que lembrar às pessoas sobre Respeito, cansa ter que falar o óbvio. Eu tô exausta, tô triste, mas não vou parar não. Seguimos. Me Respeitem. Nos Respeitem”. O ator Giovanni Venturini também se pronunciou: “Por que as pessoas não se indignam quando um ator que não tem deficiência interpreta um personagem com deficiência?” Mais uma vez a imagem de uma pessoa com nanismo é usada para o humor, para fazer graça de algo que não tem graça, expondo ao ridículo.

Aí eu me pergunto: já que querem fazer um filme com um personagem com nanismo, porque raios não contratam um ator com nanismo? E não venham dizer que não tem, porque tem. O mercado tá cheio de gente talentosa e querendo trabalhar, inclusive para quebrar esses paradigmas impostos por uma sociedade cruel que vive para o capitalismo, pensa em números o tempo todo sem levar em consideração fatos realmente relevantes. E isso tudo vai mais além, em casos diferentes, às vezes passando batido. Lembro da minha revolta ao ver Luis Melo escalado para viver um japonês na novela Sol Nascente, na Rede Globo. Sim, ele é um grande ator, mas é descendente de índios com italianos, e nada tem a ver com a comunidade japonesa. O fato também causou indignação, e os autores usaram uma desculpa bem esfarrapada para justificar algo injustificável e de tom preconceituoso. Sabemos que, na maioria das vezes, o entretenimento, o showbusiness e o sistema têm escolhas equivocadas. Mas isso precisa mudar. Além de muitas vezes soar de forma agressiva, acaba excluindo quem poderia estar ali interpretando, trabalhando e exorcizando sentimentos e emoções.

A pergunta é: qual o limite do lugar de fala na interpretação e na criação de personagens? O conceito supracitado é o fato de se assumir uma identidade e de falar em nome dela. E o teatro, o cinema, e meios que usam da atuação, fazem exatamente isso. Por exemplo: um ator interpreta um rei, mesmo não sendo um rei. Até aí tudo bem, afinal, isso é interpretar. Mas neste caso, e como na maioria, não fere ninguém, não tira o lugar de alguém, e não faz piada de algo que não tem graça. Simone de Beauvoir dizia que “para se discutir uma relação, é preciso declarar-se”. Os pontos de vista só são validados dependendo de certas circunstâncias, sejam elas de poder, autoridade ou experiência. Mas um homem não pode - e nem deve - falar como uma mulher se sente, assim como um branco não pode - e não deve - falar como um negro se sente. E segue a lista. A deslegitimação faz parte da retórica e do diálogo. Quando se tenta tomar a empatia de outros, principalmente se tratando de minorias sociais, é preciso levar em conta o respeito ao seu lugar, pois, como a filósofa Márcia Tiburi aponta, “todo lugar de fala é um lugar de dor”. As pessoas falam de um ponto de vista em que já foram desprezadas, ridicularizadas e violentadas. “Às vezes, um lugar de fala pode ser um lugar de dor, e um lugar de dor pode ser um lugar de fala”.

Existe o recurso do sujeito do discurso na teoria da literatura, onde o autor manipula o leitor dentro das características da narrativa para que se crie uma verossimilhança que faça com que o leitor creia no efeito do real da história. Mas é função do autor deixar o contexto sócio-cultural claro para seu público. A ideia do lugar de fala tem como objetivo oferecer visibilidade a sujeitos cujos pensamentos são desconsiderados. Ao tratarmos de determinados assuntos, como racismo e machismo, pessoas negras e mulheres possuem lugar de fala. Podem oferecer uma visão que brancos e homens não tem. Não significa que, quem não faz parte daquele grupo, não possa expressar sua opinião. Mas que estejam abertos a ouvir, a aprender, apreender, entender e respeitar o que os protagonistas do assunto querem dizer. Eu fiquei realmente triste com o caso deste filme, assim como já fiquei com tantos outros. Não foi legal. Se os criadores deste projeto achavam que ia ser engraçado, erraram feio. Por gerações e gerações, piadas com anões, assim como negros, judeus, loiras e portugueses eram comuns nas rodas e nos papos dos tios do pavê. Mas já deu. Olha, não tem graça nenhuma, é preconceituoso, é racista, é xenofóbico, é machista. É só ter bom senso e wifi que as coisas melhoram. Foguete não dá ré, então vamos andar pra frente. E sempre manter o respeito. Respeito. Esse é o meu lugar de fala.

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