CAIO BUCKER

Minha amiga Cida

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Por CAIO BUCKER

Publicado em 09/09/2021 às 08:49

Alterado em 09/09/2021 às 08:49

Caio Bucker JB

Foi ouvindo o álbum “Um Copo de Veneno” que me inspirei. Não só para escrever esta matéria, mas para outras ideias instigantes. O disco surgiu após as gravações de um programa para o Canal Brasil - com o mesmo nome - onde a apresentadora assume diferentes personagens no comando de um cabaré alucinado, com doses ácidas de música e poesia. Foram gravadas uma ou duas músicas a cada episódio ou história, e depois resolveram pegar as canções e colocar em disco, que é brilhante por sinal. Ou alucinante, como já disseram. Estou falando da Cida Moreira, cantora, pianista, atriz e multiartista genial e única, com personalidade forte e estética um tanto quanto curiosa. E não, ela não é minha amiga. Infelizmente. Mas é como se fosse. Sei que somos próximos, temos uma intimidade artística bem definida. E mesmo assim, existe um elo entre nós: o sobrenome “Moreira”, em mim na certidão de nascimento, e nela no nome artístico. Sinto que somos parte de uma mesma tribo, com uma linguagem autoral e desconstruída, um pensamento fora da caixa, livre de preconceitos e julgamentos, e fazendo aquilo que acreditamos com força e sensatez. Batemos um papo pelo telefone e sentei na hora para concluir este texto, que vinha pairando sobre minha mente caótica.

Macaque in the trees
A cantora, pianista, atriz e multiartista Cida Moreira (Foto: Foto:divulgação/Melissa Guimarães)

Sobre seu último álbum, “Um Copo de Veneno”, Cida interpreta diversos cantores e autores de forma surreal, no melhor sentido da palavra. Mistura uma música de Lenine e Lula Queiroga (“O Verbo e a Verba”) com um refrão de Mamonas Assassinas (“1406”). Em Dussek (“Singapura”), ela abusa do lado teatral, sempre presente. Em Falamansa (“Avisa”), pega o que tem de melhor e deixa a canção mais bonita. Grita e protesta energizando o que é frio, cantando “Prezadíssimos Ouvintes”, do mestre Itamar Assumpção. Vira a nossa cabeça, literalmente, ao cantar uma música de Chico Buarque e Paulo Sérgio Valle, eternizada na voz de Alcione. Emociona com sua versão de “Efêmera”, de Tulipa Ruiz. Demonstra total respeito ao funk e poetisa com Valesca Popozuda. E ainda provoca ao som de “Private Dancer”, acariciando nossos ouvidos com seu piano ultra bem tocado e sua voz que tira as coordenadas. Isso é só um spoiler do que esse disco faz com a gente. Fazer versões tão autênticas de clássicos e não-clássicos, para ela é um jeito de viver, é sua história, é o tipo de formação e cultura que tem. Por ter estudado música desde criança, e com formação musical e estética muito grande, viajou o mundo e criou seu modo de ser: “Faço as coisas que batem em mim. Tenho uma personalidade mais teatral e isso é visto nas minhas obras. Me sinto quase como um personagem, e meu personagem é a cantora Cida Moreira, diferente da Maria Aparecida, que é outra pessoa. Sou personagem de mim mesma.”

Natural de São Paulo, iniciou a carreira artística na década de 70, atuando em teatro e musicais. Consagrou-se nos palcos como atriz através do espetáculo “A Farsa da Noiva Bombardeada”, de Alcides Nogueira, em 1977. Integrou o elenco original de “A Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, e brilhou em seu primeiro espetáculo solo, “Summertime”, em 1980, grande sucesso de público e crítica. No cinema, chamou atenção logo em um dos seus primeiros trabalhos, “O Olho Mágico do Amor”, de 1981, que lhe rendeu o Prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Seu primeiro disco foi lançado em 1981, “Summertime”, gravado ao vivo, contendo "Summertime" (D. Heyward e G. Gershwin) e "Dream a little dream of me" (W. Schwant, F. André e G. Kahan), além da versão censurada da canção "Geni" (Chico Buarque). Em 1983, gravou o LP “Abolerado Blues”; em 1986, o LP “Cida Moreira”; e em 1988, o LP “Cida Moreira interpreta Brecht”. Lança o EP “Cida Moreira canta Chico Buarque” em 1993, interpretando canções do compositor. Em 1997, grava o álbum “Na trilha do cinema”, com canções incluídas em trilhas sonoras. Seis anos depois, em 2003, lança “Uma canção pelo ar” com releituras de clássicos da MPB, e em 2008, presta uma belíssima homenagem ao centenário de Cartola com o disco “Angenor”. No ano seguinte, participa da coletânea “Elas cantam Paulinho da Viola”, ao lado de cantoras como Alaíde Costa e Fabiana Cozza. Em 2010, integra o time de cantoras que deram voz a canções de Yoko Ono na coletânea “Mrs. Lennon”, ao lado de Angela Ro Ro, Zélia Duncan, Silvia Machete, entre outras. Em 2011, o álbum “A dama indigna” conta com músicas de Amy Winehouse e David Bowie. Em 2015, lança “Soledade”, um disco marcado pela brasilidade, que ganhou uma gravação voz e piano em disco dois anos depois.

A Cida faz muita coisa, e muita coisa incrível. Mas ela me disse que poderia ter gravado mais. Sou assim também. Nossa veia artística vem desde criança. Para ela, a palavra é o mais fundamental. Ela escolhe músicas pela palavra. Claro que em determinadas fases da vida, outras coisas dizem mais com seu pensamento como pessoa, como mulher, como brasileira. Mas ela preza pela palavra, pela poesia e pela literatura profundamente. Sobre cantar coisas tão inusitadas em versões tão sofisticadas, ela questiona: “Todo mundo tem conceitos incríveis sobre tudo, e eu estou querendo fugir dessa coisa. É minha personalidade mesmo, meu estilo de vida, pois as situações vêm naturalmente e eu vou pegando. Me relaciono com a música de forma intensa a vida inteira. Não canto somente aquilo que apresento no palco. Pelo contrário, eu sou uma ouvinte. Adoraria ter feito muito mais discos do que eu fiz até agora, porque é muita coisa que gosto e gostaria de mexer, principalmente porque tenho profunda reverência pela música e pelos artistas. E quanto mais velha eu fico, percebo cada vez mais essa reverência.”

Suas referências vêm da arte em geral. Cantora, intérprete, pessoa que se transfigura para poder cantar, e canta aquilo com um aumento de percepção e sensibilidade. "Às vezes, eu tiro um monte de coisa e deixo o mínimo, porque o mínimo pode ser maravilhoso. Eu sou capaz de dizer que sou influenciada por qualquer coisa que bata no meu emocional e na minha inteligência, ou em momentos da vida que estou mais para um lado e tal.” Inclusive, falamos sobre o novo momento da música, inteiramente no mundo digital, e sobre esta nova geração que surge a cada dia. “Hoje eu gosto muito mais das novas gerações enquanto artistas. A minha geração, artisticamente falando, ou envelheceu muito mal ou envelheceu muito bem. Mas eu não tenho saudosismo musical. Não mesmo. Não acho que a música brasileira era melhor antes. Eu quero cantar coisas que eu nunca cantei, e essa nova geração é muito forte. Inclusive, alguns são mais estudiosos musicalmente. Falo de qualidade e não de quantidade. E sinto que as coisas estão muito mais difíceis para eles do que foi na nossa época. Continuo batendo cabeça para todos, e quero ouvir e conhecer coisas novas.”

Em relação àquele papo que já falei aqui algumas vezes, da forma preconceituosa em chamar alguns artistas de “Lado B”, ela rapidamente exclamou: “Eu ouço a vida inteira que sou Lado B. E sou mesmo, e daí? Sou completamente fora do padrão, desde criança e na minha vida toda sempre fui. Acho que se eu não quisesse continuar sendo Lado B, poderia ter mudado o rumo da minha carreira, mas eu não me acreditaria. Eu não critico ninguém, não julgo ninguém e nem me coloco nesta posição. O que me irrita é ainda chamarem artistas como eu, e muitos outros, de “alternativos”. Somos alternativos a que? A quem? A nada! Chico Buarque é alternativo hoje. Esses que acreditam num padrão de mídia, nem me interessam.” Faço de suas palavras as minhas, Cida. Ela, que em Novembro completa 70 anos, nunca imaginou que iria comemorar a data num momento brasileiro como esse. “Vou ter que viver isso na pandemia. Acho um mérito chegar aos 70 sendo artista e vivendo de arte, fazendo só aquilo que eu acredito. Não acho nenhum tipo de heroísmo, mas é muito interessante.” Para uma artista tão autêntica e potente, livre de preconceitos e amarras, não poderia e nem deveria ser diferente. Neste momento que estamos vivendo, esse deserto, não é brincadeira. Mas ela segue na criatividade, na busca por conhecer coisas novas e cantar algo que bata forte no peito. Assim como ela se inspira em muita gente, ela é uma grande inspiração na vida e na arte para muitos. E pra mim também. Obrigado, minha amiga.

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