CAIO BUCKER

Os malditos da MPB

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Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 12/08/2021 às 08:34

Alterado em 12/08/2021 às 08:34

Caio Bucker JB

Dois mil e cinco. Eu apresentava os shows de um projeto multiartístico, o Geringonça, que acontecia no Sesc Tijuca com atividades diversas, como oficinas de mediação de palco, teatro e poesia, cineclube, encontros semanais para novos artistas com seus projetos e trabalhos, e um show gratuito mensal, chamado “Amostra Grátis”. Ali era o palco de experimentos, encontros e a miscelânea cultural da cidade. Que projeto incrível, e que falta faz. Foi essencial na minha formação enquanto artista, produtor e até como cidadão. “Você vai apresentar o show de Jards Macalé.” Quem? Não conhecia, confesso. Procurei saber na hora. Ouvi seus discos e pesquisei sua vida e obra de cabo a rabo, para subir ao palco antes do show e honrar o artista que ali iria se apresentar. Virei fã. Meses depois, mais um gênio “lado B” que tive a missão de apresentar. Era o Jorge Mautner. Virei fã também. Confesso que os mais alternativos me despertam curiosidade, pois vão pela contramão do tradicional, militam como querem, e tenho a sensação que são os mais sinceros com suas ideias por meio do estilo, das letras e das músicas, que quebram padrões e criam novos conceitos e sensações na maioria das vezes. Continuei a pesquisa em cima de Macalé e Mautner, e descobri que eles faziam parte de uma mesma tribo. Claro, não tinha como ser diferente. Surgiam ali, na minha vida e no meu imaginário, os chamados “malditos da MPB”.

Macaque in the trees
Jards Macalé e Jorge Mautner, uns dos malditos da MPB (Foto: Fotos: Felipe Diniz/Daryan Dorneles)

Jards Macalé, Jorge Mautner, Tom Zé, Sérgio Sampaio, Luiz Melodia, Walter Franco e Itamar Assumpção. Estes são os artistas que integram o chamado clube dos “malditos” da música popular brasileira, título que nem sempre era aceito por eles. A originalidade e qualidade artística fora da caixa iam de encontro ao mercado, do conservadorismo, das grandes gravadoras e rádios FM, dos discos de ouro em programas de TV e do público em geral. Provocadores e extremamente talentosos, receberam este rótulo nas décadas de 70 e 80, com experimentações e linguagens pouco tragáveis para o mundo comum. Eram transgressores, próximos à contracultura, e mesmo não se relacionando em gênero musical, contavam com diversas parcerias entre si e até com grandes nomes da música, principalmente com membros tropicalistas como Caetano Veloso. Tinham uma relação instável com o mercado, mas uma recepção positiva de um nicho de público. Utilizavam recursos musicais não muito comuns, fundindo elementos estéticos e temáticos não usuais, além de letras fortes, ácidas e sarcásticas. Alguns até tiveram espaço nas paradas de sucesso, mas não com a grande aceitação da massa. Resolveram tocar a carreira por conta própria. Mandaram bem.

Jards Macalé é um dos maiores revolucionários da MPB, nem sempre compreendido. Iniciou sua carreira em 1965 com o álbum “Só Morto”. Militante ativo contra a ditadura, teve várias obras censuradas pelo regime e seu nome nunca teve grande destaque na mídia de massa. Após 20 anos sem lançar um álbum de inéditas, em 2019 o artista trabalhou em “Besta Fera”, trabalho onde expressa toda sua genialidade em um disco atual, jovem e ao mesmo tempo histórico. É dele músicas como “Vapor Barato”, sucesso na voz de Gal e O Rappa. Jorge Mautner é um artista cientista na essência. Lançou o primeiro livro aos 15 anos, e milita na política desde 1962. Encontrou no violino sua principal forma de expressão, e no final dos anos 60, se envolveu fortemente com o Tropicalismo, embora não tendo o mesmo destaque que os outros. Foi exilado com Caetano e Gil, e continuou fazendo parceria com eles durante a vida. Dentre suas grandes obras, podemos citar “Vampiro” e “Maracatu Atômico”, esta última que brilhou na voz do gênio Chico Science. Outro “maldito” que estava ligado ao tropicalismo mas também não se destacou é Tom Zé. Para mim, um dos maiores da história, tanto que uma das primeiras matérias escritas por mim aqui no JB foi para ele. Nosso jovem octogenário é um grande exemplo de mistura de sons e artes, pois une a música, a poesia, o teatro, o circo e o que ele quiser. Como dito na matéria anterior, ele se considerava caótico e deficiente, mas com sua genialidade, mergulhou no caos, saiu dele e tomou frente em sua criação de forma única.

Quem era conhecido como “o mais maldito dos malditos” era Sérgio Sampaio, parceiro musical e grande amigo de Raul Seixas no início da carreira. Destacou-se no cenário nacional em 1972 com “Eu quero é botar meu bloco na rua”, apresentada inicialmente no IV Festival Internacional da Canção. Pensavam que ele faria mais hits, mas ele nem queria. Por conta do perfil vanguardista, misturando samba, blues, efeitos sonoros e poesias, e de sua loucura particular, foi deixado de lado. Temos também Luiz Melodia, que explodiu nas paradas de sucesso com “Pérola Negra”. Direto do bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, abandonou o ginásio e passou a adolescência compondo e tocando sucessos da Jovem Guarda e da Bossa Nova com amigos. Esta experiência somada à atmosfera em que vivia, do tradicional samba dos morros cariocas, resultaram em um estilo único. Mesmo tendo uma fase bem sucedida e com músicas em trilhas sonoras de novela, como “Juventude Transviada”, se desviava dos padrões radiofônicos, e obviamente, foi para escanteio. Walter Franco começou a carreira nos anos 60, mas nunca teve nenhum reconhecimento, embora fosse considerado um nome de peso pela classe artística, e notadamente um dos músicos mais influentes no cenário underground brasileiro. Talvez, um dos mais revolucionários da história. Serviu de inspiração para Itamar Assumpção, outro “maldito”, que rejeitado pela indústria fonográfica, lançou seu primeiro álbum nos anos 80 de sua forma, que gerou certo reconhecimento na cena paulistana, principalmente por suas apresentações performáticas. Como um dos grandes responsáveis por difundir a música independente do Brasil, ganhou um museu dedicado à sua vida e obra. É o primeiro museu virtual de um artista negro brasileiro.

Sabemos que os processos históricos atuam de forma decisiva na produção e recepção da arte. Certos pontos de análise e entendimento das dinâmicas musicais já foram mais estudados, porém as relações que determinam ser “maldito” dentro da MPB, são pouco analisadas perante outras. O fato de não pertencer à MPB poderia determinar quanto e como um artista seria relevante dentro de um período. Mas ser um “maldito”, de certa forma, refletiu na crítica e na atuação de diversos músicos. Suas memórias, no decorrer dos anos, foram pouco lembradas. Diante do campo de atuação que a música popular brasileira transformou, eles passaram a representar um grupo de artistas que em boa parte das suas práticas legitimaram o gênero. Como exemplo, temos a questão mercadológica, o comportamento perante ao público e a representação em um lugar onde a nascente e estabelecida MPB dos anos 70 incorporou influências e experimentalismos de formas variadas, de acordo com a relação que estabelecia com cada artista. Eu não os vejo de forma tão maldita assim, no sentido pejorativo da palavra. Até porque, se tudo isso que eles proporcionaram, criaram, e transgrediram de forma única e original, faz deles “malditos”, então quero ser um maldito também. Haja inspiração.

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