CAIO BUCKER

Deus é mulher, e tem nome

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Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 15/07/2021 às 08:37

Caio Bucker JB

Elza Gomes da Conceição é o nome dela. Elza Soares para o mundo. Aos 91 anos, comemora aniversário em duas datas: 23 de Junho e 22 de Julho. Nasceu na Vila Vintém, e cresceu na Água Santa, no Rio de Janeiro. De família pobre e composta por dez irmãos, foi obrigada a largar os estudos aos doze anos de idade para casar com um amigo do pai, que abusou dela. No casamento, se é que isso pode ser chamado de casamento, a violência doméstica e sexual, e o primeiro filho aos 13 anos. Aos quinze perdeu o segundo filho, e com seu marido abusador doente, trabalhou como encaixotadora numa fábrica de sabão e num manicômio. Ficou viúva aos vinte e um, e com quatro filhos para sustentar, o sonho de cantar ficava cada vez mais distante. Trabalhou como faxineira para pagar as contas, mas, confiante no seu talento, decidiu se inscrever no concurso do programa “Calouros em Desfile”. O apresentador, Ary Barroso, recebe a diva com gargalhadas, por sua roupa e jeito humildes, e lhe pergunta: “De que planeta você veio, minha filha?” Ela prontamente responde: “Do mesmo planeta que o senhor. Do Planeta Fome!”. Ali surgia de vez uma estrela, e o velho Ary teve que concordar. A carreira musical era um sonho, mas também uma oportunidade para não passar mais fome, embora ela diga que o tempo passou e a fome continua. A fome de cultura, fome de igualdade, fome de respeito, fome de conhecimento. A fome só muda de cara, mas não tem fim.

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Elza Soares no show Deus é Mulher (Foto: @callanga)

Símbolo para diversas minorias, nasceu mulher, negra e pobre. Passou o pão que o diabo amassou para conquistar coisas simples e ser respeitada. Foi desmoralizada na sociedade por conta de seu relacionamento com o polêmico jogador Mané Garrincha, com quem viveu dezessete anos, entre idas, turbulências e vindas. É uma grande voz por trazer em sua obra uma resposta potente às violências comuns à maioria das mulheres, e sobreviventes do machismo, do racismo, das desigualdades sociais e de gênero. Todo palco que pisa tem militância, tem história, propriedade e memórias. Em 2000 foi premiada como a “melhor cantora do milênio” pela BBC Londres. Sua primeira indicação a prêmio veio em 2003 no Grammy Latino, com o álbum “Do Cóccix até o Pescoço”. Depois, seis indicações e dez vitórias, incluindo o Grammy Latino de Melhor Álbum de MPB por “A mulher do fim do mundo”. Para mim, são dezessete vitórias. Ou melhor: noventa e um anos de vitórias. O álbum “Deus é Mulher”, de 2018, deixa mais explícita a militância feminina, embora a veia lutadora venha desde sempre. “Mil nações moldaram minha cara; Minha voz, uso para dizer o que se cala; O meu país é meu lugar de fala.” Com esse grito, ela abre o disco, empoderado para o movimento negro, feminista e afrobrasileiro. O colega e jornalista Mauro Ferreira definiu como um “álbum de aura punk, onde Elza levanta a voz para dizer o que se cala”. Concordo. É obrigatório ouvir mil vezes.

Em uma matéria para o site Catarinas, Elza afirmou que “a visão da mulher para o mundo é que mudou e eu estou acompanhando isso. Eu sou mulher, não sou trapo.” Em Março de 2020, gritou em apoio à Greve Internacional das Mulheres: “Vamos mulheres, vamos para as ruas. Vamos buscar nossos direitos, vamos lá, vamos gritar, vamos mulherada!”. Sua voz metálica transmite tudo com força, e de forma única, vai se adaptando às novas gerações, tecnologias e aos novos mundos. É luta pela liberdade e pela igualdade, assim como a mulher brasileira. Desde criança pensava: “Não é possível que Deus não seja mulher!" Questiona um mundo fechado ao debate e à reflexão entre as diferenças, onde o conceito de lugar de fala, como legitimação da voz oprimida, passou a ser visto como bandeira excludente. Ela diz que nasceu feminista, e a lutar pelos direitos das mulheres, de sua mãe e dela mesmo. Afirma, reafirma e toca na ferida, com aquele tapa na cara que dói mas nos faz acordar. Desde sempre existente, mais do que nunca necessário.

Nos últimos dias, um DJ irrelevante agrediu sua companheira na frente da filha. E não foi uma vez não. Se vitimizou e solicitou à justiça que ela calasse a boca, pois poderia prejudicar sua carreira. Vejam só, calar ainda mais? Já não basta todo o feminicídio que acontece no mundo? O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres, sem contar a violência física, agressão psicológica, coerção sexual, injúria, alienação parental, punição corporal e a minimização do discurso, colocando a mulher como louca, exagerada e mimizenta. A luta feminista está aí para vencer a histórica desigualdade de gênero, que até hoje se faz presente. A arte faz parte disso, e suas relações estreitas com o movimento feminista surgem no final dos anos 60, nos Estados Unidos, com as primeiras passeatas e protestos em prol da inserção de um maior número de artistas mulheres em exposições, coleções e galerias. Por volta dos anos 70 e 80, sob influência destes movimentos e das teorias pós-estruturalistas, as artistas começaram a questionar e colocar em suas obras a importância de expressar aspectos da personalidade individual, e propor mudanças para o mundo na esperança de levá-lo à igualdade. Por meio da pintura, da performance, da literatura, do vídeo e da música, tem servido como uma força motriz inovadora e de suma importância. Embora não seja um movimento estético dentro da arte, é um modo preciso de interagir com o mundo e seus respectivos reflexos representacionais. Fazer arte é isso: denunciar os problemas do povo, lutar e gritar para que as pessoas ouçam vossas mensagens.

Assim como Elza, outras mulheres incríveis nos permitem o aprendizado, a reflexão e a desconstrução. Falo de Shonda Rhimes, Chimamanda Ngozi Adichie, Michelle Perrot, Silvia Federici, Elisa Lucinda, Beyoncé, Rosana Palazyan, Simone de Beauvoir, Djamila Ribeiro, Emma Watson, Adrian Piper, Pitty, Heloisa Buarque de Holanda, Janelle Monáe, Tássia Reis, Christiane Jatahy, Anita Tijoux, Preta Rara, Nicki Minaj, a banda Sleater-Kinney, o coletivo Pussy Riot, e a lista cresce com força e empoderamento. Falta de informação não é, gente. Somos machistas em desconstrução, fomos criados numa sociedade patriarcal e temos que desconstruir este comportamento urgentemente. Pensar na igualdade, como um rompimento com as referências identitárias constitutivas do imaginário social. É um longo caminho de escuta, leitura, debate e humildade. Ouçam as mulheres! Ouçam mulheres, leiam mulheres, trabalhem com mulheres. Elas têm muito a nos dizer e ensinar. Assim como a deusa Elza Soares, que nem precisou morrer para virar entidade.