CAIO BUCKER

Vou escrever uma carta para mim mesmo

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Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 01/07/2021 às 09:12

Alterado em 01/07/2021 às 09:18

Caio Bucker JB

Estou pensando em voltar a escrever cartas. Já tive esse hábito quando criança. Gostava de escrever para quem eu admirasse, para dizer que amava meus pais ou pedir desculpas para evitar ficar de castigo. Tinha uma atriz mexicana que eu era apaixonado, devo ter escrito pra ela também. Trocava textos sobre Vasco e Palmeiras com um primo distante, mas o jogo acabou. Já vivi o momento de cartas românticas na escola, até que uma vez entregaram pra pessoa errada de propósito. Era uma tentativa de me sacanear, mas achei engraçado e virei o jogo. Eu curto esse lance, gosto do papel e ando com um bloco para os devaneios que surgem. Só que agora estou pensando em escrever cartas para mim mesmo. Nem venham me dizer que é maluquice. Tem gente que cria grupo no whatsapp - sem ninguém mais - pra jogar ideias e fazer anotações. Eu mesmo tenho um. Acho que vou seguir o que o Tonico Pereira fazia quando jovem: de noite, escrevia, e ao terminar, lacrava com o maior carinho. O sono vinha, ele dormia. Ao acordar, ávido, abria as cartas e lia em primeira mão. Ele nunca usou o serviço dos correios, porque as cartas eram para ele mesmo. E elas sempre alertavam muitas coisas.

Macaque in the trees
Zygmunt Bauman em 44 cartas do mundo líquido moderno (Foto: Arquivo)

Cartas revelam personalidade, mostram laços e graus de intimidade. São consideradas o meio de comunicação mais antigo do mundo e é a mãe dos gêneros textuais, ao lado dos mitos e contos populares. Destacam-se na filosofia e na literatura, principalmente pelo estilo menos formal de dirigir-se a alguém, explicitando conceitos e pensamentos. Platão, Cícero, Sêneca, Descartes e Santo Agostinho são alguns dos que escreveram na linguagem epistolar, abordando questões morais e políticas da época. A correspondência se torna uma fonte relevante para a interpretação de ideias, na medida em que o remetente as expõe de modo leve e direto. O primeiro romance que li neste formato foi “Gente Pobre”, de Dostoiévski, publicado quando ele tinha 25 anos. Apresenta um funcionário público e uma jovem órfã, que trocam cartas para desabafar sobre a pobreza enfrentada na vida, e a nobreza de seus sentimentos. O autor retrata as classes oprimidas e mostra que a virtude não é exclusiva dos ricos. Outro belíssimo exemplo é “Correspondências”, de Clarice Lispector, onde apresenta cartas trocadas com outros escritores, artistas e familiares, sendo umas de sua autoria, e outras recebidas por ela. É uma breve compreensão de sua obra e um encontro com sua intimidade, com Manuel Bandeira e até com Fernanda Montenegro.

E nesse mundo pós-moderno que vivemos? Falar em carta gera um estranhamento, principalmente na chamada “geração Z”, essa expressão que veio à tona esses dias se referindo ao pessoal que nasceu online, no final dos anos 90 e início dos anos 2000, com a tecnologia avançada, a informática bombando e as redes sociais na crista da onda. Eita, que termo “cringe”! Essa é outra expressão que tive que pesquisar o significado, e descobri que é algo vergonhoso, normalmente direcionada aos “millennials”, os nascidos entre os anos 80 e o início dos anos 90. Será que essa new generation ultra conectada já escreveu ou recebeu uma carta? É tão old school quanto um toca-fitas, um disco de vinil ou um aparelho de fax. Com a chegada da internet, tudo se reinventou, inclusive a escrita. De acordo com os Correios, o volume de correspondências entre pessoas físicas diminuiu cerca de 70%. Até os boletos têm chegado por email. Por outro lado, a entrega de encomendas aumentaram, por causa do crescimento do comércio online. Nos dias de hoje, onde o digital domina tudo e todos com um simples click, uma carta escrita carrega o passado, a nostalgia, uma relíquia. E paradoxalmente, carrega também a inovação, pois vem como uma grande surpresa. Mas durante a pandemia, ganhou força. Com o isolamento social marcado pelo home office, reuniões pelo zoom e festas virtuais, há quem tenha cansado das telas. A solução foi voltar à moda antiga. Surgiram projetos incríveis, como “Querido Alguém” e “Envelope de Papel”, que visam ligar corações que querem espalhar palavras por aí com pessoas que precisam delas, indo pela contramão das comunicações digitais, tão impalpáveis e instantâneas.

Bauman, no livro “44 cartas do mundo líquido moderno’’, escreve sobre assuntos que discorrem a respeito das redes sociais, da privacidade e da falta dela, das relações e da cultura. Define o que chama de modernidade líquida, mostrando que as mudanças no sujeito e no meio podem ocorrer rapidamente, sendo assim improvável ter certezas duradouras diante de qualquer assunto. Traça um paralelo das gerações X e Y e suas diferenças, vantagens e desvantagens, cultos ao corpo e a falta de apelo crítico. Autores que falam sobre o tema não apresentam uma visão otimista, já que as mudanças ocorridas e o uso das novas formas de conexão acabam por fragilizar relações e torná-las frágeis e de fácil rompimento. É sobre a falta de solidez das relações humanas decorrente do imediatismo que afeta a sociedade moderna em todos os âmbitos. Ele compara estas novas relações a produtos do mercado capitalista, que podem ser adquiridos e facilmente descartados quando não se fazem mais necessários. A carta enviada está enviada e pronto. Não tem como “apagar para todos” e cancelar o envio.

Mais do que o perfil cringe e vintage, neste momento tão frio que vivemos, as cartas podem servir como um abraço. É uma forma de transferir para o papel ou até para a tela, o que a cabeça e o coração andam pensando, como uma catarse emocional. É colocar para fora e nos ouvir, nos ler, nos aperceber. Falar de nós e para nós, com o cheiro, com o cuidado e a escolha de cada palavra. Tem poesia e ternura. Meditação. É a própria alma que é preciso criar no que se escreve. Mas, assim como alguém traz em seu rosto a semelhança natural com seus antepassados, também é bom que possa perceber no que se escreve a filiação dos pensamentos que se gravaram em sua alma. Vale o respiro. É só desligar um pouco da tecnologia e do mundo digital para experimentar o analógico. Não é somente sobre cartas. Assim também tem os livros, os discos, as ligações. Em breve também o teatro presencial, o cinema, as reuniões com abraços e os encontros olho no olho. Vai, começa escrevendo pra você mesmo. Só não vale postar.