CAIO BUCKER

A arte na era da balela

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Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 24/06/2021 às 09:15

Alterado em 24/06/2021 às 09:15

Caio Bucker JB

Dia desses estava relendo o brilhante ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin. Citei um trecho na coluna que carinhosamente chamei de “Neutro é o detergente”. Dias depois, uma live chegou até mim falando sobre a “pós-verdade”. Fiquei digerindo este termo que, de tão contemporâneo, chega a incomodar. Trata-se de técnicas usadas para controlar as opiniões, e com as populares fake news, manipular o povo. Na minha terra chamam isso de mentira, calúnia, engano, falsidade, balela, lorota, fraude, embuste, inverdade, farsa, pulha, impostura, ludíbrio, trapaça. Em pleno século da informação e na era da internet, mentir não é tão fácil assim. Para isso, inventaram uma fórmula maquiavélica, que consiste em insistir demasiadamente numa mentira, disseminar para o máximo de pessoas, inabilitar quem a contradiz e convencer a massa que o impostor é a única fonte segura e correta daquela informação, fazendo com que todo o resto se torne ridículo. E quem disse que o ridículo é ruim? A arte da palhaçaria nos ensina a ser ridículos! Mas pera lá, o que isso tem a ver com o Walter Benjamin?

Macaque in the trees
Pós-verdade, por Martin Shovel (Foto: Reprodução)

No ensaio supracitado, o autor reflete sobre como os meios técnicos de reprodução macularam a aura da obra de arte, fazendo com que esta viesse a perder sua singularidade e sua autenticidade. Com isso, poderia recepcionar um valor de exposição, ligado às massas, pela sua própria capacidade de reproduzir-se tecnicamente, e desta forma, pronta a cumprir uma função política. Benjamin questiona o que é a aura, afinal. Ele mesmo responde que é “uma teia singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho”. Com base nesta definição, é possível identificar os fatores sociais que condicionam o declínio atual da aura, visto que deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ficarem mais próximas e ter domínio sobre elas, é uma preocupação tão apaixonada das pessoas, como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade.

Entramos numa situação paradoxal, onde as pessoas não acreditam mais em nada, e também acreditam em qualquer coisa. Os principais canais para isso são o whatsapp e as redes sociais, que deram voz aos imbecis. Nunca vi tanta informação surreal. O jornalismo nos ensina a apurar os fatos, buscar fontes e informações seguras. Vamos apurar também, galera? Em 2016, o Dicionário Oxford definiu “pós-verdade” como a palavra do ano, se referindo às “circunstâncias na qual os fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública que aquelas que apelam para a emoção e à crença pessoal”. Ou seja, a verdade já não é o mais importante e torna-se algo secundário. Não existe mais a intenção de propagar fatos objetivos, mas a versão que melhor reforce determinada visão, mesmo que esta não seja a verdadeira. Políticos foram eleitos assim, fatos foram desacreditados, outros foram reinventados. Em tempos de pandemia, é um perigo. Imagina instruir o uso de remédios sem comprovação científica? Imagina glosar o uso de máscara e minimizar a importância da vacina? Para os mais ignorantes, as crenças influenciam mais que os fatos verídicos. A mentira sempre esteve presente no mundo, inclusive na política. Mas antes, a reação natural e normal perante a essas situações, era a repulsa e o sentimento de desaprovação. Hoje, parece que nem tanto.

E para a arte, como seria esse conceito de “pós-verdade”, ou, de mentira? Não estou preocupado, aqui, com a verdade numa obra de ficção, mas sim com o significado de uma obra dizer a verdade sobre o mundo. Já falei que seu papel não é igual sempre e varia com a época e com a cultura do lugar. Historicamente, a arte tem raízes ligadas ao sagrado e a representação simbólica, mas afirmam-se na contracultura, tomada por ideais e busca de sentidos. É feita em diversos momentos históricos e reflete sentimentos, questionamentos e posicionamentos que constroem cidadãos e sociedade. A forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. Rui Mourão diz que, “no atual paradigma escópico de “pós-verdade”, os critérios mediadores que regem a arte são: institucionalização, pois se está dentro de um espaço artístico está validado como arte; mercantilização, pois se o preço é alto a arte é boa, o que estimula o marketing capitalista aliado ao status social e permite uma enorme especulação financeira; e discurso, pois se mediada por um discurso conceitual convincente, frequentemente retórico e com um jargão próprio, a arte é legitimada, e com ela os seus realizadores.” Chegar à verdade e ao sentimento só é possível pelo envolvimento, pela empatia e pela busca do encontro. Arte sem verdade não toca, e até engana.

O filósofo e musicólogo alemão, Theodor Adorno, comenta que o valor cultural reside precisamente no seu caráter de emocionalmente revelar verdades ocultas acerca de temáticas sombrias do Eu e da sociedade. É comum ir ao teatro assistir a uma montagem de Nelson Rodrigues ou a um filme do Tarantino na grande tela e ter dúvidas, pensar criticamente e jogar o “talvez” para cima. Mas numa dinâmica comprometida, produzem-se experiências com base em processos autênticos do sentir. Mesmo que esses processos estejam um pouco à parte do real, visam o real. Ninguém descobriu a pólvora agora. As fake news existem há muito tempo. Lembro que, na faculdade de cinema, um professor contou sobre a transmissão de “A guerra dos mundos” na rádio, feita por Orson Welles. Era a simulação de uma invasão extraterrestre, que desencadeou pânico nos Estados Unidos em pleno 1938. Ali, já ficava claro que os meios de comunicação e artísticos transformam a realidade, na medida em que legitimam fatos. Quanta responsabilidade, não? Essa tal “pós-verdade” tem muitas implicações políticas, morais e institucionais, afeta laços e manipula narrativas.

Outro dia vi o comentário de um ator terraplanista. Imaginem só. Chegamos a um ponto onde Luis Buñuel seria realista. Parece que a noção de verdade perdeu o prazo de validade, e foi reduzida apenas a construção de poder. Afinal, essas relações de poder determinam regimes da verdade. E estes moldam a própria subjetividade. Vivemos na era dos simulacros, onde verídico é aquilo que viraliza, sem qualquer referencial que nos ajude a distinguir o verdadeiro do falso. Eu sigo chamando isso tudo de mentira, calúnia, engano, falsidade…até porque sua emancipação causa um afastamento que esvazia e desmoraliza a força da arte. É a grande perda da aura e da autenticidade, que tenta inibir nossa cultura de ser afetiva, sensorial e de troca. Troca de sentidos. E se faz sentido aos sentidos, é real. O “x” da questão é essa manipulação cruel, as invenções caluniosas e oportunistas, e a falta de caráter de quem se propõe a ser fiel à plenitude. Pablo Picasso disse que “a arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade”. Será?