CAIO BUCKER

Aos mestres, muito obrigado

.

Por CAIO BUCKER, [email protected]

Publicado em 17/06/2021 às 09:21

Alterado em 17/06/2021 às 09:21

Caio Bucker JB

Sócrates, mesmo que não tenha existido, deixou um legado de mestre. Eu explico. Tudo o que sabemos sobre sua vida e seu pensamento é proveniente de outros filósofos que o seguiram, pois ele não deixou nada escrito. Platão, Xenofonte e o comediógrafo Aristófanes, tinham Sócrates como personagem, e desenvolveram ideias e teorias a partir de suas reflexões. Considerado na época “o mais sábio dos homens”, achava contraditório, pois não tinha nenhum conhecimento específico. Porém, sua indignação com a ignorância e o vazio de pensamento, fez com que começasse a questionar todos que se consideravam sábios. Transmitiu ensinamentos, buscava definições universais para ideias como o bem, a justiça e a sabedoria, lutou pela democracia e pela liberdade de expressão, e incentivava o seu próximo a criar e refletir. Foi condenado à morte por pensar diferente do estabelecido pela sociedade, mas deixou sua herança e é considerado o pai da filosofia ocidental. Hoje, me coloco aqui de forma mais sentimental, e movido por um sentimento de gratidão aos mestres que já tive nessa vida dedicada à arte.

Macaque in the trees
A morte de Sócrates", por Jacques-Louis David (1787) (Foto: Reprodução)

Sempre fui a espetáculos quando criança, incentivado por meus pais. Naquela época, visitava as aulas de teatro que minha irmã fazia, e a curiosidade não me permitiu ficar apenas assistindo. Fui chegando aos poucos, e o professor, Jujuba, me apresentou aos bastidores de uma peça. Me colocou para ajudar na operação de som e fui entendendo de todo o processo. Foi minha primeira escola, e ele, meu primeiro mestre. Depois, com 13 anos, decidi buscar um curso, pois precisava estudar. Sabendo de um projeto com oficinas de teatro e mediação de palco no Sesc, corri para me inscrever. Vagas esgotadas. A minha decepção fez com que um cara me perguntasse: “Quer fazer teatro? Então me ajuda aqui.” Ele abriu uma Fiorino com um sofá dentro e pediu para ajudá-lo a levar ao palco, pois era parte do cenário de uma peça que estava dirigindo. Era o Henrique Brito, na época conhecido como Lalau. “Isso é fazer teatro também”, disse. Subi ao palco pela primeira vez, pedindo licença intuitivamente, e comecei a enchê-lo de perguntas. Consegui entrar para as oficinas, e ali já sabia que sentiria o cheiro de cortina empoeirada para sempre.

A experiência, que seria de uns meses, durou alguns anos. Era o projeto Geringonça, desenvolvido por Fábio Maleronka, o primeiro a me mostrar o universo da produção cultural. Ele corria de um lado para o outro com um radinho pendurado, e eu achava aquilo o máximo. Lá, tive encontros que confirmavam minha paixão pela arte. Amir Haddad, Yeda Dantas, Leo Carnevale, Gustavo Gasparani e Marcus Vinícius Faustini, atual Secretário Municipal de Cultura no Rio de Janeiro. Lá também, conheci Simone Mazzer, que me alertou sobre ter disciplina, o perigo do deslumbramento e a responsabilidade que os artistas têm sobre a sociedade. Pouco tempo depois deste processo, assisti naquele mesmo palco um espetáculo intitulado como uma “comédia documentário manifesto”. Devo ter ido umas 10 vezes, até que o ator, Marcos Americano, me perguntou: “Quem é você que está sempre aqui?”. Papo vai, papo vem, e ele me convida para o elenco. Achei aquilo muito doido, pois ele nem sabia direito quem eu era. Mas, no fundo, sabia sim. Passei a apresentar o prólogo com um texto do Gogol. Foi a primeira vez que senti o gostinho de entrar em temporada, e de sobra, conheci Denise Stoklos e seu teatro essencial, que investiga processos de atuação solo utilizando o mínimo possível de recursos, promovendo o potencial do ator com corpo, voz e construção. Me serviu para a vida toda.

Entrei para a faculdade, e logo de cara encontrei Zeeudes Alencar e o jornalismo, hoje amigo e parceiro de trabalho. Comecei a escrever constantemente e buscar metodologias para as pesquisas. Me botou pilha em seguir carreira acadêmica, mostrando que era possível fazer de tudo um pouco, afinal, as manifestações artísticas estão todas no mesmo núcleo da subjetividade. E conseguiu. Walter Lima Jr. me proporcionou uma nova visão do cinema, mais crítica e lúdica. As telas se tornaram um mundo paralelo. Tínhamos algo em comum: a música de Adoniran Barbosa, um dos meus favoritos. Antonio Jorge Alaby Pinheiro foi quem me mostrou que os mais práticos podem ser bons acadêmicos também, e o primeiro a me colocar em sala de aula como professor. Temos um lema em comum: “Vamos fazer!”. Claudia Chaves também é dessa escola. Não fui seu aluno diretamente, mas na rádio corredor e nos teatros da vida, era o mais disciplinado e pontual. Se tornou amiga e mentora. A primeira vez que fomos a um espetáculo, ela como crítica e eu como espectador, lembro dela comentando comigo ao final: “Coitada da Agatha Christie. Preciso de champagne.” Sua ironia espontânea me conquistou para sempre.

Na faculdade também conheci Pedro Camargo, talvez o meu grande mestre na vida. Cineasta, professor, compositor e tarólogo, uma figura ímpar e peculiar que contava histórias sem roteiro definido. Foi o precursor da pornochanchada no país, e dava aula jogado na cadeira, tomando um copo de açaí. Eram horas falando de arte e vida, e nós, sobre arte e vida escutando. Foi quem me convenceu a parar de beber leite, e tinha teorias curiosas, como a do fabricante do ketchup, “que é o mesmo que fabrica o remédio que cura a doença causada pelo ketchup”. Para alguns, era conhecido como o “mestre sem cerimônia”, pois bagunçava tudo. Levantou uma identificação com a solidão itinerante e o trovador, que chegava numa cidade oferecendo seus préstimos, e de quem o rei até poderia gostar e deixá-lo ficar um tempo na corte. Mas, de repente, começava a fazer suas críticas e o rei já não tolerava mais. Não tem como ser isento, né? Impossível conter as críticas, era uma missão. Sua guerra interna como professor era não fazer cabeças e sim jogar ideias. Foi ele quem me deu o diploma na colação de grau com um abraço fraterno dizendo “eu te amo”. Num de nossos últimos encontros, me contou que, se voltasse a fazer cinema, teria que fazer refletir a experiência que vivemos atualmente, de mudança de paradigma. Mas não deu tempo. Agora em Junho, seis anos de sua partida para o além.

O Pedro me alertou uma vez que “Deleuze não estudou Deleuze”. Absorvi como uma dica para abrir horizontes e explorar correntes diversas. Na vida acadêmica, fui pesquisar logo o Deleuze. Seria influência dele? Entrei numas de estudar a imagem contemporânea a partir das teorias do filósofo francês. Dois professores negaram o projeto, mas James Arêas se encantou e me abraçou. Estou pela terceira vez sob sua orientação, deleuziana por si só. Me fez mergulhar na obra do autor, e propôs pensar a relação do diferente com o diferente, e a oposição entre singularidade e universalidade. Me identifiquei com eles por conta do pensamento que vai pela contramão da moda literária e filosófica, onde um dos objetivos é reabilitar os esquecidos ou menos valorizados, mostrando outras possibilidades de pensamento. Deleuze e suas teorias modificaram a essência da filosofia no último século. E a mim também.

Fora das salas de aula, temos os mestres da vida. Tenho a sorte de trabalhar com eles. Elisa Lucinda, por exemplo, mal sabe que comecei a ler poesia por causa dela. Sua forma de falar e escrever me emociona. Quando assisti seu solo “Parem de Falar Mal da Rotina” pela primeira vez, pensei: “este é o espetáculo que eu queria produzir”. Quando a gente emana para o universo, ele te devolve, não é? Anos e anos depois, ela me chama para uma reunião, e em 2019 assumo a produção deste trabalho e de seus outros, pois suas ideias não cabem naquelas três horas de peça. Nos momentos de aperto, lembro de uma frase: “Sobrevivam às pessoas e aos governos, e não esqueçam o bom humor.” Essa é da Nany People, aquela que considero minha madrinha na arte. São mais de 10 anos trabalhando juntos e contando. Hoje ela me ligou para dar um puxão de orelha, e terminou a ligação fazendo piada. Sempre foi assim. Logo na primeira vez que a trouxe para o Rio, fui em mais de 20 hotéis em busca de parceria. E consegui. Sem querer, ela estava me ensinando a sempre ter persistência, afinal de contas, o não a gente já tem. Para quem gosta de histórias, como eu, ouvir a titia falar é uma chuva de emoções.

Esses são alguns dos Sócrates da minha vida. Ah! Essa frase é invenção do Tonico Pereira, que é um dos Sócrates da minha vida mesmo. Foi ele quem me ensinou o que é teatro na essência: liberdade. E é essa liberdade que eu sempre quis na vida. Ele se diz socrático por natureza, pois Sócrates não escreveu nada, e ele não leu quase nada. Mas não perde o timing preciso e irônico na fala. Eu admiro e aprendo tanto que escrevi um livro em homenagem a ele, organizando seus pensamentos. Mas vou falar sobre isso depois. Por hoje, um muito obrigado àqueles que compartilharam incentivo, reflexão e abrigo, muitas vezes sem saber. Eu que não sou de dar nome aos bois, considerei necessário citar um por um. Faço questão de vestir o uniforme de gafanhoto e ficar atento. Atenção, jovens: ouçam sempre os mais experientes e pensem muito. A arte de pensar é o tesouro dos sábios.