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Morre o poeta Thiago de Mello, aos 95 anos; leia poemas, veja vídeo dele declamando 'Os Estatutos do Homem'

Um dos grandes escritores de sua geração, autor de 'Faz Escuro, Mas Eu Canto' enfrentou a ditadura militar

Por CADERNO B
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Publicado em 14/01/2022 às 18:36

Alterado em 16/01/2022 às 10:40

Thiago de Mello Foto: reproduçao

O poeta e jornalista amazonense Thiago de Mello morreu aos 95 anos nesta sexta-feira, durante o sono, segundo informações de seus familiares.

Nascido em Barreirinha, no interior do Amazonas, era um dos poetas mais conhecidos da região e cantou em prosa e verso sua luta pela preservação da maior floresta do mundo.

Um de seus poemas mais célebres é "Os Estatutos do Homem", escrito logo após a instauração do regime militar, que correu o mundo em várias traduções e começa com os versos "fica decretado que agora vale a verdade./ agora vale a vida,/ e de mãos dadas,/ marcharemos todos pela vida verdadeira".

O texto foi incluído no livro "Faz Escuro, Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar", publicado no ano seguinte, que teve sua frase-título lembrada como epígrafe na última Bienal de São Paulo.

Entre suas obras poéticas, também se destacam "Mormaço na Floresta", "Vento Geral" e "Poesia Comprometida com a Minha e a Tua Vida". Em prosa, publicou livros como "Amazonas, Pátria da Água" e "Amazônia - A Menina dos Olhos do Mundo", da década de 1990.

Sua última obra publicada foi pela editora Valer, no ano passado, e se chama "Notícias da Visitação que Fiz no Verão de 1953 ao Rio Amazonas e seus Barrancos". É um relato antigo que estava inédito até 2021, segundo o editor Isaac Maciel.

"Thiago era a própria expressão da Amazônia", afirma ele. "Além de a obra dele ser densa e de muito valor, ele tinha essa característica de levar a mensagem da floresta aonde quer que ele fosse."

Mello cursou e abandonou no meio a faculdade de medicina, ingressando na diplomacia na década de 1950. Foi adido cultural na Bolívia e no Chile, tendo a carreira interrompida pelo golpe militar de 1964.

Por seu engajamento contra a ditadura, o poeta chegou a ser preso e passou anos no exílio, em países como Argentina, Portugal e Chile, onde vivia seu amigo Pablo Neruda, vencedor do Nobel de literatura cujos livros Mello traduziu para o português.

Durante a década de 1950 e 1960, o poeta circulou entre alguns dos maiores autores brasileiros, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e José Lins do Rêgo.

Em entrevista a este jornal, há quatro anos, ele comentou que escrevia uma espécie de livro de memórias em que relatava suas impressões sobre esses poetas, assim como de grandes nomes internacionais que conheceu, como Gabriel García Márquez e Jorge Luis Borges —sobre quem, aliás, publicou a obra de não ficção "Borges na Luz de Borges".

Desde que voltou ao Brasil, nos últimos anos da ditadura, Mello sempre viveu no Amazonas.

"É uma grande perda num momento tão crucial da democracia no Brasil", diz Joaquim Rodrigues de Melo, dono da Banca do Largo, que o poeta costumava frequentar em Manaus. "Ele sempre foi um defensor da liberdade, sempre se posicionou politicamente, é uma referência para a liberdade."

O velório será no palácio Rio Negro, na capital amazonense, em horário ainda a confirmar.. (Folhapress)

 

THIAGO DECLAMA 'OS ESTATUTOS DO HOMEM'

 

 

POEMAS

 

APRENDIZAGEM NO VENTO

O vendaval findou.
Agora é só o vento
soprando a sua ferocidade
mais fria do que a pele
enrijecida e azulada
dos operários fuzilados.

O vendaval findou.
Agora é só o vento cotidiano,
implacavelmente morno, hálito podre.
É com ele que se tem de aprender
a lição do revés, vida vivida.

Dos tantos que saíram,
poucos, muito poucos, se reencontrarão
um dia, tomara, naquilo que foram
ou quenão puderam ser.
Por enquanto, a cordilheira transposta,
o que se alteia
é o desvario da boca,
é cada vez mais o muro
entre a boca e a mão.

Aos que sonhavam mesmo, vendo o claro,
e que puderam permanecer
no coração ardente da sombra,
cabe o labor maior da aprendizagem.
É aprender com tudo o que foi feito
e também com tudo que deixou de ser feito,
como rasgar o caminho da esperança
que lateja, que lateja,
na frágua da paciência operária.

O vendaval findou. Telhados ocos
não poderão servir de abrigo a pássaros.

 

PARA OS QUE VIRÃO

Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.

Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular – foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
– muito mais sofridamente –
na primeira e profunda pessoa
do plural.

Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.

É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
( Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros. )
Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.

 

AS ENSINANÇAS DA DÚVIDA

Tive um chão (mas já faz tempo)
todo feito de certezas
tão duras como lajedos.

Agora (o tempo é que fez)
tenho um caminho de barro
umedecido de dúvidas.

Mas nele (devagar vou)
me cresce funda a certeza
de que vale a pena o amor

 

NÃO SOMOS MELHORES

A vida repartida dia a dia
com quem vinha querendo que a vida
pudesse um dia ser vida,
posso dizer que alguma coisa aprendi
(primeiro com amargura,
depois com essa dolorida lucidez
que nos ensina a ver nossa feiúra.)

Aprendi, por exemplo,
que não somos os melhores.
Custou, mas aprendi.
Tempo largo levei para enxergar
que era de puro desamor a chama
que crescia no olhar do companheiro.

Não somos nem melhores nem piores.
Somos iguais. Melhor é a nossa causa.

Todos os que chegamos dessas águas
barrentas e burguesas, para dar
(pouco sabemos dar) uma demão
na roda e transformar a vida injusta
dos que conhecem mesmo a banda podre,
mostramos a nós mesmos, mais que aos outros,
a face verdadeira que levamos.

É repetir: melhor é a nossa causa.
Mas no viver da vida, a vida mesma,
quando é impossível disfarçar,
quando não se pode ser nada mais
do que o homem que a gente é mesmo,
na prática cotidiana da chamada vida,
que é a verdadeira prática do homem,
fomos sempre e somente como os outros,
e muitas vezes como os piores dos outros,
os que estão do outro lado,
os que não querem, nem podem, nem pretendem
mudar o que precisa ser mudado
para que a vida possa um dia
ser mesmo vida, e para todos.

 

NÃO APRENDO A LIÇÃO

A lição de conviver,
senão de sobreviver
no mundo feroz dos homens,
me ensina que não convém
permitir que o tempo injusto
e a vida iníqua me impeçam
de dormir tranquilamente.
Pois sucede que não durmo.

Frente à verdade ferida
pelos guardiães da injustiça,
ao escárnio da opulência
e o poderio dourado
cujo esplendor se alimenta
da fome dos humilhados,
o melhor é acostumar-se,
o mundo foi sempre assim.
Contudo, não me acostumo.

A lição persiste sábia:
convém cabeça, cuidado,
que as engrenagens esmagam
o sonho que não se submete.
E que a razão prevaleça
vigilante e não conceda
espaços para a emoção.
Perante a vida ofendida
não vale a indignação.
Complexas são as causas
do desamparo do povo.
Mas não aprendo a lição.
Concedo que me comovo.

 

O QUE ME ESPANTOU

Não foi a multidão indo para casa
(nós no meio dela, disfarçando),
cabeça baixa, as pernas pesadas,
seguindo a ordem que o inimigo lhe dava.
Eram operários, homens e mulheres.
Eram homens de todas as idades,
subindo silenciosos a Grande Avenida.
Nenhum brado, nenhum braço erguido.
Nem foi a organização perfeita do inimigo,
a pontaria espantosa de seus aviões,
o rigor implacável do seu ódio.
Nem a ingenuidade dos que atenderam
ao turvo e meloso apelo
da monstruosidade humana
repetido pelo rádio.
Pois acreditaram na idiosincrasia,
e de mão beijada se entregaram
ao reino das trevas e do ranger de dentes,
onde até hoje, tirante os que foram mortos,
aprendem todos os escalões do escárneo.
O que me espantou foi o assombro
que de repente, desorbitado,
o chão fugindo, o ar faltando,
eu vi se erguer no olhar, no peito,
nas mãos que não se achavam,
daquele companheiro
marinheiro de tanto mar,
quando ele compreendeu,
depois de tanto acreditar amando,
que as barricadas, os grupos de combate,
os cordões de milhares, a vanguarda de fogo,
não íam chegar, não íam se erguer, não,
e que os planos e projetos de resistência
(escorriam de brasa as suas lágrimas)
eram planos e projetos de palavras.

 

RECADO DE COMPANHEIRO

Para que não chegue o dia
em que a flama da esperança
que arde no chão de teu dia
amanheça recoberta
de uma fuligem tão fria
como um ferrão de incerteza
no azul da alegria;
para que esse dia – e é o dia
em que te começa a morte –
não chegue, tens de guardar
dia a dia, mesmo doendo,
o amor no teu coração:
sabendo que amor só cresce
quando se reparte inteiro
e se deixa de crescer
de ser amor também deixa…

 

MORMAÇO DE PRIMAVERA

Entre chuva e chuva, o mormaço.
A luz que nos entrega o dia
não dá ainda para distinguir
o sujo do encardido,
o fugaz, do provisório.
A própria luz é molhada.
De tão baça, não me deixa
sequer enxergar o fundo
dos olhos claros da mulher amada.

Mas é com esta luz mesmo,
difusa e dolorida,
que é preciso encontrar as cores certas
para poder trabalhar a Primavera.

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