CADERNOB

‘Edna é a narradora de si mesma e de nossa história’, diz diretor

'Edna', de Eryk Rocha, é um dos destaques na competição brasileira da 26ª edição do festival de documentários É Tudo Verdade

Por MYRNA SILVEIRA BRANDÃO
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Publicado em 14/04/2021 às 12:19

O diretor Eryk Rocha Divulgação/Aruac Filmes

O filme segue a personagem título que vive à beira da rodovia Transbrasiliana, em uma terra em ruínas, construída sobre massacres. Criada apenas pela mãe, ela experimenta no seu corpo e nos de seus descendentes, as marcas de uma guerra que nunca acabou: a guerra pela terra.

Em entrevista exclusiva para o JORNAL DO BRASIL, Rocha falou sobre a motivação para realizar “Edna”, explicou a dramaturgia do filme e os desafios que precisou vencer para filmá-lo.

Macaque in the trees
Edna, a personagem título que vive à beira da rodovia Transbrasiliana (Foto: Divulgação/Aruac Filmes)

Qual a principal motivação para realizar “Edna”

Conheci Edna em 2015 durante a pesquisa de “Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos”, peça teatral concebida pela atriz e diretora Gabriela Carneiro da Cunha.
Nesse projeto me cabiam as invenções audiovisuais que iriam compor a peça. Essa conversa aconteceu em sua casa na beira da estrada na rodovia Transbrasiliana.
Desde o início ficamos muito impressionados e cativados pela presença, voz e força do relato de Edna. Filmei esse primeiro encontro com a câmera acomodada nas pernas trêmulas. Ouvimos, comovidos, ela dizer coisas tão fortes e com tanta suavidade e, ao mesmo tempo, com tanta dor e sofrimento. Ao longo do encontro sentimos sua genuína força poética, a melodia do seu pensamento que projetava uma coexistência de tempos, entrecruzando memória vivida, desejo e fabulação. Sua fala baixa e cadenciada expressava o risco e o medo de um testemunho que foi silenciado durante muito tempo.
Ela se tornava ali uma narradora de si mesma e de nossa história. Edna trazia suas marcas e experiências que se entrelaçam com a tragédia histórica do Brasil que tão cruelmente tem a ver com o nosso presente. Presente de feridas abertas e questões cruciais que ainda não fomos capazes de resolver como povo. Nas palavras dela: “eu tenho medo, a guerra ainda não acabou”.

O filme por vezes oscila entre documentário e ficção. Isso foi intencional?

Durante a preparação do filme realizamos uma ampla e cuidadosa pesquisa sobre tudo que envolvia a vida de Edna e o contexto histórico e geopolítico da região onde ela mora no sul do Pará. Nessa etapa foi fundamental a presença e trabalho do meu querido e saudoso amigo Paulo Fonteles e do Marcelo Zelic. Mergulhamos na história da guerrilha do Araguaia, Guerra dos Perdidos, ditadura militar, abertura das estradas, destruição da floresta amazônica, etc.
Quando chegamos à casa de Edna e iniciamos as filmagens, o que se impôs foi a própria relação com ela, seus desejos, angústias, sobressaltos... E com uma pequena equipe de cinco pessoas, fomos juntos pouco a pouco, descobrindo o filme. Edna nos mostrou alguns dos seus cadernos intitulados “História de minha vida”, com os escritos que foi criando ao longo de muitos anos. Como ela dizia: “Os cadernos são minha forma de desabafar... Num lugar onde não tenho a quem contar tudo que vi e vivi”.
Híbrido entre poesia, ensaios e informações didáticas, nessas páginas, Edna trazia uma mistura de memórias pessoais e memória política do país. Então a própria natureza de Edna, seus cadernos e escritos foram nossa inspiração para imaginar e buscar a forma do filme. Por exemplo, quando Edna diz: “Sonho sair daqui para um lugar não sei aonde...” Essa frase, esse verso, foi um guia para pensarmos as nuances da montagem e dramaturgia do filme.

Certamente foi preciso vencer muitos desafios na realização do filme. Qual o maior deles?

A partir da relação com a própria Edna, o desafio foi ir tecendo uma dinâmica de criação que tinha muito a ver com o cotidiano dela. E a partir daí ir achando a linguagem do filme que a meu ver precisava fazer justiça à complexidade, ao mistério e potência de nossa protagonista. Buscamos que o espírito das imagens e sons do filme respirassem Edna e suas histórias. Nesse sentido o trabalho de criação e interlocução com Gabriela Carneiro da Cunha, Renato Vallone e Waldir Xavier foi decisivo para a existência desse filme. Por outro lado, também foi um desafio filmar no sul do Pará, uma das regiões mais violentas do país. Região de muitos conflitos, massacres e disputas de terra. Então existia um clima muitas vezes de alta tensão e risco. Acredito que isso está presente na atmosfera e na poética do filme.

Macaque in the trees
Cena de Edna (Foto: Divulgação/Aruac Filmes)