GENTE
Luiz Roberto Londres: 'A Medicina é uma arte'
Por CAL GOMES
Publicado em 04/10/2025 às 09:28
Alterado em 04/10/2025 às 09:38

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Durante os mais de 50 anos em que dirigiu a renomada Clínica São Vicente, na Gávea, Rio de Janeiro, instituição médica fundada pelo seu pai, Genival Londres, no início da década de 1930, o cardiologista Luiz Roberto Londres acompanhou e segue acompanhando todo o complexo universo que envolve a área médica e a saúde no Brasil.
Formado pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, atual UFRJ, e com mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica, PUC-Rio, Dr. Londres, que está prestes a completar seis décadas dedicadas à Medicina, sempre foi um defensor do sistema público de saúde, mesmo após longos anos no comando de uma clínica particular, como é a São Vicente, adquirida em 2016 pela Rede D'Or, e, após o seu desligamento, idealizou e deu vida ao IMC – Instituto de Medicina e Cidadania, que tem como objetivo principal levar saúde de qualidade a pessoas de baixa renda e colaborar com a rede pública.
E é através do IMC que o médico acaba de lançar “Além da Medicina”, livro que lista cerca de 500 personagens, perfis e nomes, nacionais e estrangeiros, que, embora conhecidos por atividades profissionais e artísticas diversas, também eram formados em Medicina, em um vasto e interessante trabalho de pesquisa que resultou em um livro de 480 páginas, com precisos dados biográficos e fartamente ilustrado.
Dr. Luiz Roberto Londres conversou com o JORNAL DO BRASIL sobre assuntos relacionados à saúde, incluindo o programa Mais Médicos, o SUS - Sistema Único de Saúde e o conturbado período de pandemia.
Além da Medicina - Inúmeros personagens lembrados e citados em uma bela edição de 480 páginas Foto: Marcoz Gomez
Seu livro lista, com dados biográficos, inúmeros personagens que, além da Medicina, exerceram e exercem profissões que, em muitos casos, são bem diferentes da área médica. O que impulsionou o senhor a escrever um livro com esse tema?
Fui vendo aos poucos como médicos atuavam em outras áreas, sempre com realizações reconhecidas, e quantos desses se destacavam nessas outras atividades. Sempre defendi que a Medicina é uma arte e não apenas uma ciência, pois a ciência se prende mais às objetividades, enquanto a arte vai muito além disso. E foi colecionando esses nomes que resolvi escrever o livro.
Um dos personagens listados em “Além da Medicina” é o filósofo e liberal britânico John Locke que, ainda muito jovem, escreveu, ao mesmo tempo em que estudava Medicina, tratados que serviram de base para a criação da monarquia parlamentarista na Inglaterra e para a elaboração da Constituição dos Estados Unidos, influenciando também as ideias iluministas. No perfil, o senhor acentua que ele foi fundador do empirismo e defensor da liberdade e da tolerância religiosa. Isso, no longínquo século XVI, ainda com resquícios da Idade Média, período caracterizado por forte domínio de uma igreja reacionária e governos intolerantes e opressores. Como o senhor analisa o senso, quase comum, de que o estudante brasileiro de Medicina e o médico já formado têm um perfil mais conservador, bem diferente do liberal progressista de John Locke, pois boa parte veio da classe média alta e da elite da sociedade?
No meu tempo da Faculdade de Medicina, ainda não havia o SUS. Mas os hospitais públicos eram muito bem-conceituados. E a seguir os hospitais beneficentes. Os hospitais particulares eram geralmente ligados a grupos de médicos que para lá levavam a sua clientela para internação. E os estudantes dessa época eram conscientes da qualidade dos hospitais públicos e das características que envolvem os pacientes em sua complexidade de uma pessoa biopsicossocial. Na minha turma havia um considerável número de alunos que não pertenciam à elite da nossa sociedade, e a grande maioria de nós era extremamente politizados em relação aos benefícios sociais da atividade médica. Lembrando o pensador Ortega y Gasset.
Tomando por base essa variedade de perfis apresentada no livro, e por sua larga experiência na área da saúde, como o senhor definiria as características de personalidade do profissional de Medicina, utilizando como amostras todas essas informações dos tipos biográficos diversificados, dos que exerceram e exercem atividades, em muitos casos, opostas à Medicina?
As principais características do profissional de Medicina envolvem áreas diversas, como o estabelecimento da relação médico-paciente, a atenção nos relatos dos pacientes, as percepções dos exames físicos em suas diversas características em todos os sentidos do médico, como visão, audição, olfato e tato. Mas, como disse acima, a Medicina é uma arte e não uma ciência meramente objetiva. O raciocínio clínico, o ponto mais importante para se chegar a um diagnóstico correto, exige que a consulta médica tenha um tempo que permita ao médico elaborar os dados da consulta e, com sua elaboração, possa chegar a hipóteses diagnósticas que apontem o caminho do tratamento ou, se necessário, o pedido de exames complementares, hoje erroneamente chamados de “Medicina Diagnóstica”. A verdadeira Medicina Diagnóstica não se restringe a esses exames, pois, para o diagnóstico, deve-se fazer o caminho indicado. A anamnese é o início dessa jornada e o seu ponto mais importante. E, na minha experiência como cardiologista, ela me dava [o diagnóstico], em 90% dos casos, antes de se pedir os exames complementares, antes mesmo da segunda etapa da consulta, que era o exame físico do paciente.
Dois casos inesquecíveis: com um ano e meio de formado, veio ao meu consultório um paciente com quatro queixas que não me levavam a conseguir uma hipótese diagnóstica. Sabendo que eu não deveria passar ao exame físico sem ela, continuei intensificando a anamnese em todos os seus pontos: queixa principal, história da doença atual, história patológica pregressa, história familiar, história social. Depois de mais de meia hora de conversa, vi que havia entre elas uma relação: era a maneira que ele as contava; “doutor, dois meses após as férias de julho apareceu o sintoma A”; “ia passar o Natal em São Paulo, mas três meses antes apareceu o sintoma B”; “no feriado da Independência eu estava em Petrópolis quando apareceu o sintoma C”; “ia passar o dia de Finados com minha família que morava em outro estado e dois meses antes apareceu o sintoma D”.
Continuei a anamnese, pois havia aprendido que só se passa ao exame físico com alguma hipótese diagnóstica, quando percebi a lógica entre todos os sintomas: tudo havia iniciado no mês de setembro. Passei então para as histórias familiar e social e, lá pelas tantas, veio o motivo de tudo quando ele disse que havia ficado noivo de uma moça pela qual há tempos estava apaixonado, e isto aconteceu em setembro. Passei a falar do noivado: ele há tanto tempo queria isso, se dava bem com a família dela, cujo pai era um milionário, e ele então trocou de emprego para ganhar mais e marcar o casamento. E se não desse certo nesse novo emprego? Sugeri que ele fosse se abrir com o futuro sogro sobre esse temor. Ele foi e voltou à consulta três semanas depois totalmente curado de tudo: o sogro o acolheu dizendo que gostaria muito de que ele fosse o seu genro e estaria do lado dele se houvesse algum problema financeiro. Encontrei ele 20 anos depois no aeroporto, casado com filhos e muito feliz com a vida que levava.
Outro caso: um rapaz que trabalhava comigo no hospital me disse que eu acertara o diagnóstico de sua noiva. “Mas como, Aníbal, eu nem conheço a sua noiva”! “Ela tem feocromocitoma”, disse ele. É uma doença muito rara, com picos de hipertensão bem característicos. Lembrei-me, então, que ele me falara da doença da irmã e eu havia percebido que os episódios de hipertensão que ele contava eram característicos dessa doença. Eu tinha visto apenas um caso desses no meu consultório e, como sempre, estudava os sintomas relatados. E assim ficara fácil a hipótese que havia levantado.
Logo após o lançamento de “Além da Medicina”, o senhor escreveu um artigo/desabafo sobre um episódio envolvendo uma pessoa próxima que rompeu relações por não ter concordado com a figura de um dos símbolos da revolução cubana, Ernesto Che Guevara, estar exposta na capa do livro, que também exibe as figuras ilustradas do presidente Juscelino Kubitschek e do músico Aldir Blanc. Nos últimos anos, quando a extrema direita emergiu no país, ficou nítido que a classe médica também exibiu muitos simpatizantes ideológicos da direita com o perfil mais reacionário e conservador. Como o senhor analisa esse movimento de polarização política, que também envolve o profissional da Medicina?
No meu tempo da Faculdade Nacional de Medicina, grande parte de nós, estudantes, tinham um pensamento eminentemente social, e os melhores hospitais de nossa cidade eram públicos: Souza Aguiar, Miguel Couto, Pedro Ernesto e tantos outros. Os presidentes da República costumavam se internar no Hospital dos Servidores do Estado. E no meu caso, mesmo sendo filho de um dos sócios da Clínica São Vicente, onde eu pagava e ainda não tinha recursos para isso, me tratava em um desses hospitais, onde era sempre muito bem-tratado.
Em uma reportagem de 2024 para o portal UOL, o jornalista Jamil Chade informou que, por meio de pesquisas da Universidade de Lyon, na França, e de Quebec, no Canadá, publicadas na revista científica “Biomedicine & Pharmacotherapy”, a Cloroquina matou 17 mil pessoas na primeira onda da pandemia da covid nos países ricos. Como o senhor analisa o comportamento dos profissionais da Medicina que receitaram este e outros medicamentos não recomendados para o tratamento dos sintomas do Covid? Com a sua larga experiência e a vasta vivência na Medicina, como o senhor observou os governantes, secretários e ministros da saúde espalhando desinformação e condenando o uso da vacina pela população na época da pandemia?
O que vimos nessa ocasião foram opiniões divergentes sobre o que deveria ser feito. Sem dúvida, o principal seria o maior isolamento possível e o uso de máscaras por todos. O uso da vacina era importante para procurar imunizar a população e o uso de medicamentos como a Cloroquina continha dúvidas a respeito de sua atividade.
No início do ano, o senhor publicou um artigo, aqui no JORNAL DO BRASIL, com ampla defesa do SUS – Sistema Único de Saúde. No início de julho, tivemos um caso no Rio de Janeiro em que um jornalista, turista americano, foi tratado em uma emergência de um hospital público e ficou surpreso com a qualidade do atendimento recebido, e por não precisar pagar pelos serviços. O que falta para que a população em geral, de todas as classes, tenha mais confiança no SUS e reconheça a sua importância?
Na minha opinião, falta divulgar mais a qualidade das instituições de saúde que atendem o SUS e também o SUS em si mesmo. A qualidade do SUS e de suas utilizações são pouco conhecidas pela nossa população.
Quando a pandemia da covid 19 começou, em 2019, o senhor não estava mais à frente da Clínica São Vicente, instituição que ficou sob sua direção durante mais de 50 anos. Em seguida, o senhor criou o IMC – Instituto de Medicina e Cidadania. Como o Instituto atuou durante os três anos da pandemia, e como vem trabalhando atualmente?
O IMC, durante a pandemia, permaneceu atendendo tanto nos postos de saúde quanto em consultórios particulares. Vemos com muita satisfação a crescente adesão de profissionais de saúde que querem prestar serviços beneficentes, e isto mesmo durante o período da pandemia.
Como o senhor analisa o preconceito e as críticas que sofre, inclusive por parte de profissionais da saúde, o programa Mais Médicos, criado no governo da presidenta Dilma Rousseff, abandonado no governo passado, e que agora está de volta no governo Lula?
O Brasil é o segundo país do mundo na relação médicos por habitantes, só perdendo para a Índia. Por isso, podemos ver que não há falta de médicos e sim sua distribuição pelo país e também por deficiência na formação acadêmica por escolas médicas de má qualidade, cuja formação é aceita sem que haja a noção da competência das escolas onde foram formados. O programa Mais Médicos visa principalmente suprir a carência de médicos em municípios do interior e nas periferias das grandes cidades.