ARTIGOS
Maria: Mãe de Jesus e do povo fiel
Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER
Publicado em 23/11/2025 às 21:00
Alterado em 23/11/2025 às 21:00
Ainda antes do começo do Advento, tempo litúrgico que precede o Natal, aparece um importante documento do Vaticano. A Congregação da Doutrina da Fé lança uma nota redigida por seu prefeito, o Cardeal Victor Manuel Fernández e assinada pelo mesmo e pelo Papa Leão XIV.
O documento trata de alguns títulos que a piedade católica atribuiu a Maria mãe de Jesus ao longo da história e que em algumas ocasiões foram sugeridos como formulações dogmáticas pertencentes ao depósito da fé. Esses títulos são os de Corredentora e de Medianeira de todas as graças. Significam, em palavras muito resumidas e algo simplificadas, que Maria participaria da ação divina da Redenção e seria Mediadora entre Deus e a humanidade . A nota do Vaticano se opõe a esses títulos outorgados à Mãe de Jesus e explica as razões do que declara.
Por um lado, valoriza a devoção mariana popular centrada na maternidade de Maria, considerada “um tesouro da Igreja”. Esclarece bem que não existe nessa nota nenhuma pretensão de corrigir ou emendar a piedade do povo fiel que amam Maria com especial devoção.
Ao mesmo tempo, chama a atenção para o movimento de alguns grupos católicos que diferem muito da devoção popular e que ocupam espaço significativo nas redes sociais. O conteúdo que trazem acaba por gerar dúvidas nos fiéis, trazendo interpretações de expressões do passado que estão sujeitas a mais de um entendimento. O documento pretende dirimir dúvidas sobre a autenticidade dessas interpretações, “para indicar em qual sentido algumas respondem a uma devoção mariana genuína e inspirada no Evangelho, ou em qual sentido outras devem ser evitadas, pois não favorecem uma adequada compreensão da harmonia da mensagem cristã em seu conjunto.”
O Concílio Vaticano II evita usar os dois títulos marianos por “razões dogmáticas, pastorais e ecuménicas” . O Papa João Paulo II, de conhecida devoção mariana, usou o termo corredentora algumas vezes (sete segundo a nota) no sentido de participação espiritual de Maria na obra de Cristo pelo sofrimento unido ao seu.
Porém o então cardeal Joseph Ratzinger, prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé e posteriormente Papa Bento XVI pronunciou-se negativamente com relação à criação de um dogma que afirmasse os títulos de Maria como corredentora ou medianeira. Argumentou que tais títulos se distanciam muito das fontes da Revelação, como a Escritura e a Patrística. E, portanto, provocam equívocos quanto à verdade fundamental do Cristianismo, que afirma Jesus Cristo como Filho de Deus, único Redentor e Mediador.
Esta mesma posição foi a do Papa Francisco que sabiamente declarou:” Maria «jamais quis reter para si algo do seu Filho. Nunca se apresentou como corredentora. Não, discípula!».[39] A obra da redenção foi perfeita e não necessita de acréscimo algum...O Redentor é um só e este título não se duplica». Cristo «é o único Redentor: não existem corredentores com Cristo». O Papa Leão XIV, assinando a nota da Congregação para a Doutrina da Fé confirma sua adesão a esta posição.
Por isso a nota, seguindo os pontífices e a tradição do magistério da Igreja, opta pelo título privilegiado de Mãe para Maria. Este tem as suas raízes na Sagrada Escritura e nos Santos Padres; é proposto pelo Magistério e a formulação do seu conteúdo seguiu um processo na história da Igreja. A maternidade de Maria, em cujo ventre foi gerado o Filho de Deus, gera por sua vez na fé os cristãos que são membros de seu Corpo Místico. Maria é a primeira redimida pelo Redentor que é seu Filho, e assim é figura da Igreja, comunidade dos redimidos. Nessa Igreja é amada e venerada como Mãe do povo fiel, dos pobres da terra que a ela acorrem buscando consolo e carinho.
Falando nessa linha mariológica, a Congregação para a Doutrina da Fé preserva zelosamente a caminhada ecumênica que as Igrejas cristãs constroem paciente e fielmente há vários anos e que é seguramente o desejo mais profundo do coração da Mãe e do Filho: que todos sejam um. Propor como dogmas esses dois títulos marianos poderia prejudicar seriamente o ecumenismo, já que as outras igrejas cristãs são particularmente sensíveis ao fundamento bíblico para sustentar a vida de fé. Criatura amada de Deus, cheia de graça, mãe de Deus e nossa, Maria é plenamente humana e não divina. Seu Filho Jesus, esse sim, é da mesma essência que o Pai e por isso único Redentor e Mediador. A Mãe leva ao Filho, e não a si mesma.
A nota conclui dizendo que o povo simples e fiel , enquanto reconhece a glória de Maria, sabe que ela não deixou de ser uma deles. “É aquela que, como qualquer mãe, carregou no ventre o seu filho, o amamentou e o criou com carinho e com a ajuda de São José, não lhe faltando os sobressaltos e as dúvidas da maternidade (cf. Lc 2, 48-50). Ela é aquela que: canta ao Deus que «aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 53); sofre com os noivos que ficam sem vinho para a festa (cf. Jo 2, 3); sabe correr para dar uma mão à sua prima que necessitava ajuda (cf. Lc 1, 39-40); se deixa ferir, como que atravessada por uma espada, por causa da história do seu povo, onde o seu filho é «sinal de contradição» (Lc 2, 34); compreende o que é ser migrante ou exilado (cf. Mt 2, 13-15); na sua pobreza só pode oferecer um par de pombinhos (cf. Lc 2, 24) e sabe o que é ser desprezada por ser da família do pobre carpinteiro (cf. Mc 6, 3-4). Os povos sofredores reconhecem que Maria caminha com eles lado a lado e, por isso, recorrem a ela, sua Mãe, implorando ajuda.
Maria Clara Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio