ARTIGOS
Mares turbulentos
Por ADHEMAR BAHADIAN
Publicado em 16/11/2025 às 08:30
Alterado em 16/11/2025 às 10:58
O porta-aviões Gerald Ford está ancorado no mar do Caribe Foto: divulgação
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A presença da maior plataforma bélica marítima do mundo, o porta-aviões nuclear Gerald Ford está estacionado no mar do Caribe. A notícia me fez lembrar da triste época da diplomacia das canhoneiras, mas imediatamente constatei que não seria necessário remontar tantos anos na história das relações de constrangimento militar no chamado hemisfério ocidental e da América Latina em particular.
Numa associação livre, que talvez Freud facilmente explicasse, recordei-me de uma reportagem de capa da revista “Time” dos anos 60 ou 70 do século passado, que até hoje me arrepia pela descrição do que se passava dentro da cabine de um bombardeiro aéreo ao despejar uma carga brutal de bombas incendiárias sobre o Vietnã do Norte.
A reportagem descrevia o ambiente tranquilo e quase festivo dos pilotos a ouvir pelos altos-falantes da superaeronave militar a música antibélica por excelência “People” - cuja letra em inglês fala em “people who needs people“ - enquanto descarregavam a morte indiscriminada sobre cidades desprevenidas. A reportagem descrevia ainda a curva sonolenta dos aviões, com seus arsenais esvaziados em voo sereno de volta a suas bases. Missão cumprida.
Pergunto-me agora que músicas os aviões do Gerald Ford tocariam em um hipotético ataque contra alvos em nossa fronteira com a Venezuela? Talvez, dada a proximidade com as festas de Natal - marco histórico da solidariedade cristã -, os pilotos ouçam em seus capacetes o “Jingle Bells”, ou, quem sabe, o “White Christmas” na voz de Sinatra.
De tudo, me fica uma constatação terrível. A política externa de Trump errática e abusiva no comércio internacional pretende afinal o quê? Tornar os Estados Unidos da América exatamente o inverso de tudo que, durante meio século depois da Segunda Guerra Mundial, nos convencemos e admiramos? Ainda me lembro dos anos 50 do século passado quando navios de guerra americanos aportavam no Rio e seus militares passeavam fardados pela praia de Copacabana, sempre recebidos e justamente reconhecidos como defensores da Paz. Hoje, não sei se seriam vistos da mesma forma.
Trump parece fazer questão de se apresentar como o coveiro de nossas ilusões sobre a possibilidade de vivermos num mundo inspirado pela Carta das Nações Unidas com o fim do nazismo e do fascismo. Felizmente, já se constata nos Estados Unidos um crescente desconforto com o desequilíbrio emocional evidente de um autocandidato ao Prêmio Nobel da Paz a bombardear pequenas embarcações supostamente carregadas de drogas.
A dúvida que me persegue nesses dias é a de saber se Trump será o último e definitivo agente de um mundo inóspito, hostil a rudimentos básicos da ciência moderna, em particular ao próprio esfacelamento da vida terrestre com a mais do que comprovada crise climática. Como os historiadores futuros poderão explicar a ausência do governo dos Estados Unidos à COP 30?
Talvez, não por otimismo, mas, por fatalismo, acredito que Trump será o ponto de virada na história mundial. Em sua sanha de neo-colonizar a todos, gregos e troianos, a política externa dos Estados Unidos nos imponha uma definitiva e absolutamente necessária revisão de nosso papel como seres humanos.
Excluída, por ser simplesmente suicida, uma terceira guerra mundial para a qual marchamos hoje com a visão paranoica de Trump, impõe-se que o instinto de sobrevivência humana se dispa das ideologias extremistas de esquerda e direita e finalmente assuma a realidade de um conflito entre as pulsões de vida e de morte. Conflito que nos levou ao melhor e ao pior deste nosso trânsito terreno, desde a descoberta do fogo como fonte de vida aos incêndios que nos destruíram ao longo da história.
A tarefa pode ser considerada utópica ou irrealista, ou até mesmo ingênua. Não me preocupo com essas adjetivações. Apenas, reconheço que nada se fará sem engenho e arte. Estamos, repito, a enfrentar o maior desafio jamais colocado à nossa espécie e ao nosso planeta. Nunca a inteligência humana terá sido tão submetida a tantos desafios como nós próprios criamos. As armas nucleares são um engenho humano, as religiões e os fanatismos são crenças humanas, assim como a solidariedade e o amor são atributos humanos.
Os sistemas econômicos talhados como capitalismo ou socialismo são doutrinas econômicas humanas que não resultaram na eliminação das disparidades e desajustes sociais. A reeducação social e política por todos desejada não virá por extraterrestres, nem por magos ou mitos.
A hora é de tolerância intolerante. Só a aceitação de nossas fraquezas e o conhecimento de nossas pulsões óbvias de morte e vida nos poderá redimir.
John Kennedy, primeiro presidente católico dos Estados Unidos, terminou seu discurso de posse com a advertência de que o trabalho de construção da liberdade e do desenvolvimento seria uma tarefa exclusivamente humana. Poderíamos pedir as bençãos de Deus, mas nós deveríamos lembrar de que nesta terra o trabalho era essencialmente humano.
Quando Kennedy tomou posse, me recordo que estava no primeiro ano da faculdade. Seu discurso inaugural ainda até hoje impressiona pelo altíssimo nível retórico com frases até hoje lembradas por força e beleza. Aliterações, só comparáveis aos melhores sermões do padre Vieira, me fizeram estudá-lo como peça de uma força teatral shakespeariana, comparável ao discurso de Marco Antônio na morte de César.
Mas hoje, numa análise retrospectiva, talvez tenhamos que considerá-lo o primeiro discurso a anunciar o desenvolvimento da política externa americana voltada para dentro e a anunciar o primeiro sintoma do retraimento idealista e solidário observado na construção das Nações Unidas. Kennedy adverte o mundo que uma nova geração chega ao poder e deixa claro que os Estados Unidos da América não pretendem perder sua condição de potência maior econômica e militar.
Recorde-se que no início dos anos 60 do século passado a Europa se reconstruía em grande parte com o auxílio do Plano Marshall, e tanto a Alemanha quanto o Japão tornavam-se competitivos. Kennedy não deixou dúvidas que sua retórica idealista era sobretudo um toque de alvorada diante de seus concorrentes ajudados a não ser arrastados pelo canto de sereia do comunismo, mas cuja ascensão no cenário internacional seria sempre subordinada ao hegemonismo americano.
Claro que esta direção se torna mais óbvia com Nixon e o abandono do lastro ouro, e se aprofunda com Reagan e Thatcher e o desmonte das redes protetoras contra o capitalismo financeiro.
Kennedy, por trás de sua retórica brilhante, aumenta a presença dos Estados Unidos no Vietnã, hesita no combate ao segregacionismo e favorece substancialmente o apoio a governos militares na América Latina, inclusive ao golpe de 64 no Brasil, este já no governo Johnson.
Este breve recorrido tem como objetivo recordar que tanto o partido Democrata quanto o partido Republicano, com nuances, compartilham dos mesmos objetivos de sustentação da hegemonia americana. Esta constatação em grande parte explica a paralisação da oposição democrata a Trump nos dias de hoje, após o traumático ataque às torres gêmeas, a consequente invasão do Iraque e desastrosa retirada do Afeganistão.
O quadro evidentemente se torna mais complexo com a ascensão da China o seu desenvolvimento tecnológico e militar nos dias que correm.
Neste contexto, preocupa a introdução da temática do combate às drogas, pretexto, e não justificativa, para uma tendência de re-colonização de áreas anteriormente longe do espectro belicista trazido pelo porta-aviões Gerald Ford no Caribe. Injustificáveis igualmente as tentativas de humilhar o Canadá e o México, parceiros comerciais de primeira linha dos Estados Unidos.
Finalmente, sobretudo no cenário brasileiro, a situação se agrava por oportunismo lesa-pátria quando o radicalismo político messiânico tende a confundir e embaralhar conceitos da razoabilidade e necessidade de combate articulado nacionalmente contra o crime organizado, fenômeno intrinsecamente distinto do terrorismo político.
Este último ponto tende a ser corrigido com a cooperação inteligente entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. A negociação externa vem-se pautando igualmente pelo equilíbrio do chefe do Executivo brasileiro e o eficiente corpo de funcionários públicos que abrem sendas de concordância onde antes existia apenas arrogância.
Triste constatar que neste ponto o extremismo político ainda não se deu conta de que labora ostensiva e criminosamente contra o interesse nitidamente nacional.
Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado