ARTIGOS
Os homens sábios e a jovem
Por MARIA CLARA BINGEMER
Publicado em 01/10/2025 às 14:18
Alterado em 01/10/2025 às 14:18
Era um domingo perfeito como algumas vezes acontece no Rio de Janeiro. Céu azul, sol, temperatura amena. Praias cheias eram resposta das pessoas ao presente que lhes oferecia a natureza com seu esplendor indestrutível. Pisar na areia, mergulhar no mar, relaxar de uma semana cheia de trabalho e esforço. A praia é um espaço livre onde pobres e ricos, gregos e troianos, homens e mulheres partilham uma convivência um tanto única.
Naquele domingo, no entanto, o espaço da praia de Copacabana abrigou mais gente do que de costume. Um volume imenso de pessoas de todas as idades se fez presente para defender desejos e sonhos políticos. A estrela do esplendoroso dia era a democracia, que brilhava mais que o sol de final de inverno carioca. Assim como em outras capitais do Brasil, o Rio de Janeiro se reuniu à beira da lendária Princesinha do Mar para protestar contra a corrupção política.
Era preciso dizer não a projetos como a PEC que protegia políticos eleitos de punições jurídicas sobre delitos porventura cometidos. PEC da blindagem: assim foi chamada. Mas naquele domingo, quando o animo do povo brasileiro se expressava na medida de sua indignação, já era nomeada PEC da bandidagem. O nome não pode ser mais apropriado. Pois bandidos não são os que desejam as trevas e o ocultamento para levar adiante seus secretos compromissos com a iniquidade? Ou se escondem para praticar sem temor seus atos escusos e inomináveis com a proteção de uma lei desfigurada que já não regula positivamente os costumes e as práticas dos indivíduos e setores sociais?
Também esteve ao centro dos protestos o projeto que propunha a concessão de anistia a pessoas condenadas pelo 8 de Janeiro de 2023 por golpe contra o estado democrático de direito. A palavra de ordem soavam fortes no calçadão. Sem anistia!
Ordeira e pacífica, a manifestação fazia poesia social, como diria sem dúvida, o saudoso Papa Francisco, falecido em abril deste ano. Clamava por justiça, e inspirava o ânimo cívico e os sentimentos patrióticos. Marchava e se reunia em pontos chave, consciente e inspiradora.
Quando a tarde deslizava em direção ao crepúsculo, às 17 hs, surgiram na praia alguns dos artistas maiores da música brasileira. Três deles, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, octogenários geniais que personificam nossa música eram acompanhados também por Djavan e Paulinho da Viola. Caetano e Gil vestiam as cores da bandeira: verde e amarelo, resgatando assim o símbolo pátrio como inseparável da democracia em defesa da qual se manifestava o povo brasileiro.
E os sábios artistas começaram a cantar. E o que aconteceu foi belo demais para poder ser descrito. A sintonia e a reciprocidade entre eles e os manifestantes se fez sentir, total e eloquente desde o primeiro momento. As novas gerações, presentes em quantidade significativa, ouviram em suas vozes os desejos mais profundos que os habitavam.
A uma certa altura, as câmeras das emissoras de tv que transmitiam o evento detiveram-se em uma jovem. Olhos claros, cabelos lindamente recolhidos em uma espessa trança, a menina emocionada chorava. As lágrimas desciam por seu rosto enquanto no palco Chico fazia acontecer o som de sua composição Cálice, acompanhado pelos outros.
Ali aconteceu uma epifania. Aquela menina, devido a sua pouca idade, provavelmente não teve demasiado contato com a bela canção. Seguramente não consistia para ela em um hino como o foi para a nossa geração. E, no entanto, o pedido do poeta de que dele se afastasse o cálice tinto do sangue das vítimas da repressão atingiu seu afeto e a emoção transbordou por seus belos olhos. Ela se identificava com o canto de Chico, muitas décadas mais velho. Seu coração batia no compasso da presença e inspiração daqueles artistas que sofreram na vida e na pele os horrores da ditadura. Exilados por longo tempo, experimentaram a nostalgia do Brasil que gemia sob regime de exceção.
A emoção e as lágrimas da menina foram proféticas entre o céu e as areias da praia. Sinal de que as novas gerações não se sentem à vontade com o ódio e a violência política. Desejam, sim, democracia e liberdade. Desejam que a justiça e o direito corram como rio pela vida do povo brasileiro.
Naquele fim de tarde o gênio dos artistas e a emoção da jovem mostraram ao país e ao mundo que a liberdade é o bem maior. Não é aspiração ardente apenas dos mais velhos, já vivendo seu fim de jornada existencial. Pelo contrário, a arte sobrevive ao medo e à corrupção e ajuda a levantar alto a paixão pela democracia naqueles que constituem o futuro da nação.
Maria Clara Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio