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Brasil em risco de confisco: já estamos resgatando as nossas reservas?

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Por REYNALDO JOSÉ ARAGON GONÇALVES

Publicado em 20/08/2025 às 11:49

Alterado em 20/08/2025 às 11:52

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Em meio à guerra financeira aberta contra o Brasil, com tarifas recordes, sanções políticas e pressões militares atípicas na região, surge a pergunta inevitável: nossas reservas internacionais, guardadas em bancos e instituições do eixo EUA-OTAN, podem ser confiscadas a qualquer momento? O precedente russo e o caso venezuelano mostram que soberania não se defende apenas com diplomacia e Exército, mas também com a gestão estratégica da riqueza nacional. O Brasil está preparado?

A sombra do confisco
O Brasil atravessa um momento que mistura déjà-vu histórico e prenúncio de ruptura. Tarifas de 50% impostas por Washington, sanções individuais contra ministros da Suprema Corte e movimentações militares inusitadas no Atlântico Sul não são fatos isolados, mas peças de uma mesma engrenagem: a ofensiva híbrida para fragilizar nossa soberania. No centro dessa engrenagem lateja uma pergunta incômoda, que até pouco tempo atrás parecia impensável: nossas reservas internacionais, guardadas em bancos e instituições sob jurisdição do eixo EUA-OTAN, podem ser alvo de confisco?

O precedente é brutal. A Rússia viu cerca de US$ 300 bilhões de suas reservas congeladas da noite para o dia. O Afeganistão, após a tomada do Talibã, teve bilhões bloqueados e desviados para fundos norte-americanos. A Venezuela ainda luta nos tribunais britânicos pelo ouro retido em Londres. O recado é claro: quando a política externa dos EUA invoca a expressão “segurança nacional”, o direito internacional e a titularidade formal se tornam meros adereços retóricos.

Hoje, a sombra desse mecanismo paira sobre o Brasil. Se até a maior economia militarizada do planeta não hesitou em atacar as reservas de potências nucleares, o que nos garante imunidade? O inimigo invisível não são tanques nem mísseis, mas cliques em sistemas financeiros que podem desferir um golpe silencioso, tão letal quanto uma invasão.

O que está em jogo: Reservas como arma de guerra
As reservas internacionais sempre foram vistas como um colchão de segurança, um seguro contra crises cambiais, um símbolo de solidez de um país diante dos mercados. Mas no século XXI, essa visão se provou ingênua. As reservas deixaram de ser apenas uma proteção e passaram a ser um alvo, um instrumento de guerra no tabuleiro geopolítico.

Quando os EUA e seus aliados congelaram centenas de bilhões de dólares da Rússia, não atacaram apenas a economia de Moscou, mas redefiniram o próprio conceito de soberania financeira. Se o coração do sistema financeiro global é controlado por poucos emissores de moeda e guardiões de custódia — e se esses guardiões decidem, em consenso político, transformar ativos legítimos em reféns de suas agendas —, então nenhum país fora do eixo está protegido.

Os casos se acumulam: ouro venezuelano retido em cofres britânicos, bilhões do Afeganistão desviados sob pretexto humanitário, reservas do Irã e da Síria inacessíveis há décadas. A mensagem é pedagógica: quem desafia a ordem estabelecida pode ter sua riqueza nacional transformada em pó digital. O confisco se converteu na bala de prata da guerra financeira.

É nesse contexto que o Brasil precisa se enxergar: como potência do Sul Global, dotada de recursos estratégicos e de um projeto de soberania, mas exposta a um sistema internacional que já demonstrou não reconhecer fronteiras nem legalidade quando seus interesses estão em jogo. Nossa blindagem não é absoluta, e ignorar isso seria um erro fatal.

O Brasil hoje: O mapa das reservas
O Brasil ostenta reservas internacionais em torno de US$ 350 bilhões, administradas pelo Banco Central. À primeira vista, um arsenal financeiro respeitável, capaz de proteger o país contra choques cambiais ou fugas especulativas. Mas quando se olha para a anatomia dessas reservas, a vulnerabilidade salta aos olhos.

A maior parte está aplicada em títulos soberanos emitidos por governos do eixo ocidental, especialmente dos Estados Unidos e da União Europeia. Há também depósitos em bancos centrais e organismos multilaterais como o BIS (Bank for International Settlements). Apenas uma fração relativamente pequena — cerca de 3,6% — está convertida em ouro físico, e pouco mais de 5% em yuan, resultado da tímida aproximação com a China.

Isso significa que, embora a carteira seja diversificada em termos de instrumentos, continua excessivamente exposta ao risco político-jurídico de estar sob jurisdições hostis. Diferente da Rússia, que acelerou a acumulação de ouro dentro de seu território antes do congelamento, ou da China, que mantém suas reservas majoritariamente em moeda própria e em arranjos controlados pelo Estado, o Brasil ainda depende do dólar e de contrapartes que já demonstraram dispostas a usar reservas estrangeiras como reféns políticos.

Mais grave: o Brasil não divulga em tempo real a localização precisa da custódia. Mas sabe-se que uma parte expressiva desses ativos está registrada diretamente em sistemas sob alçada norte-americana e europeia. Isso significa que, caso a ofensiva híbrida avance para o campo financeiro — como já se ensaia com sanções individuais e tarifaço —, o congelamento de reservas não é hipótese remota: é risco real, calculável e previsível.

Em outras palavras: o cofre está cheio, mas a chave não está em nossas mãos.

A ofensiva em curso: Trump, tarifas e sanções
O ataque deixou de ser retórico. Em 30 de julho, a Casa Branca editou ordem executiva elevando a sobretaxa total contra o Brasil a 50%, sob a rubrica de “emergência de segurança nacional”, vinculando-a a atos de autoridades brasileiras e a disputas sobre liberdade de expressão em plataformas dos EUA. Na prática, Washington assumiu que usa tarifa como instrumento político. O governo brasileiro já acionou a OMC, e os EUA aceitaram as consultas, mas declararam que o tema é “segurança nacional”, tentativa clássica de blindar medidas ao contencioso multilateral.

O segundo vetor foi o uso da Lei Magnitsky contra um ministro do STF, Alexandre de Moraes, com bloqueio de bens sob jurisdição norte-americana e proibição de transações por pessoas e empresas dos EUA. O próprio Tesouro publicou a sanção; em seguida, bancos e o mercado no Brasil tremeram, e o STF respondeu fixando que leis e ordens estrangeiras não se aplicam automaticamente no território nacional, o que cria um cabo de guerra regulatório para o sistema bancário.

O terceiro pilar é militar. O Pentágono deslocou meios aéreos e navais para o Caribe sul e enviou destroyers para águas próximas à Venezuela, sob justificativa antidrogas. Em paralelo, a 4ª Frota intensificou cronogramas de exercícios e presença regional. Para o observador estratégico, o recado é inequívoco: pressão econômica e jurídica acompanhada de postura de força no entorno marítimo imediato do Brasil.

Os efeitos já pingam na economia real e no crédito. Setores exportadores, como o café, viram compradores dos EUA se afastarem após a alíquota de 50% entrar em vigor. No financeiro, o sell-off dos bancos refletiu o risco de extraterritorialidade de sanções conflitando com decisões soberanas locais. O quadro confirma que tarifas e sanções não são “sinais” isolados, mas engrenagens de uma mesma máquina de coerção.

No meio do furacão, o mapa de risco das reservas ajuda a entender a vulnerabilidade. No fim de 2024, a carteira estava 78,45% em dólar, 5,23% em euro e 5,31% em yuan, com ouro em 3,55%. É diversificação modesta diante de um contencioso que envolve justamente jurisdições emitentes e custodiantes. A lição é óbvia: se o instrumento de pressão é jurídico-político, a resposta não pode ser apenas cambial ou de duration.

Cenários futuros: confisco, fuga ou autonomia

Cenário A: confisco ou congelamento parcial
Gatilhos prováveis: escalada do contencioso na OMC sob alegação de segurança nacional, novas sanções dirigidas a autoridades e ampliação do escopo para entidades estatais, acopladas a uma deterioração deliberada do clima informacional contra o Brasil. Vetores operacionais: ordens administrativas do Tesouro dos EUA e dos principais custodiantes ocidentais, que tornam indisponível parte dos ativos sob sua jurisdição. Efeitos de curto prazo: choque de confiança, alta instantânea do dólar e dos credit default swaps, pressão para liquidez em linhas de swap e queda sincronizada de bancos e exportadoras sensíveis ao mercado americano. Probabilidade condicionada ao cenário atual: moderada.

Cenário B: fuga defensiva controlada
Gatilhos prováveis: percepção de risco jurídico além do aceitável, antes do evento extremo. Movimentos previstos: aumento do ouro físico em território nacional, rotação de custódia para entidades públicas multilaterais menos sujeitas a captura política, elevação do peso de ativos em moedas não ocidentais e ampliação de acordos de pagamentos alternativos. Efeitos de curto prazo: custo de transição e menor liquidez em parte da carteira, porém forte redução do risco de aprisionamento jurídico. Sinalizações esperadas: comunicação técnica do Banco Central reforçando princípios de prudência, execução em janelas discretas e sem alarde. Probabilidade condicionada: alta, se a pressão política continuar.

Cenário C: autonomia estratégica acelerada
Gatilhos prováveis: continuidade da guerra tarifária e jurídica, mais exercícios militares no entorno regional e alinhamento diplomático dentro de arranjos não dolarizados. Vetores operacionais: expansão de linhas de swap com parceiros asiáticos, uso de plataformas de compensação fora do circuito tradicional, aprofundamento do comércio em moedas locais com salvaguardas contratuais de custódia em território brasileiro. Efeitos de curto prazo: fricção inicial no comércio, mas ganho de poder de barganha e redução estrutural da vulnerabilidade. Probabilidade condicionada: crescente, se Brasília transformar a crise em política de Estado.

Indicadores de alerta que devemos monitorar diariamente
1 - Linguagem do Executivo dos EUA e de órgãos sancionadores.

2 - Pauta de tribunais e decisões domésticas sobre extraterritorialidade de sanções.

3 - Movimentação da 4ª Frota e exercícios no entorno caribenho e Atlântico Sul.

4 - Fluxos em mercados de ouro e prêmios de risco do Brasil.

5 - Sinais de reconfiguração de custódia e de composição de reservas em relatórios e comunicações técnicas do Banco Central.

Contramedidas imediatas de baixo ruído e alto impacto
1 - Testes de estresse de liquidez com cenários de congelamento parcial e protocolos de resposta.

2 - Elevação gradual do componente físico de ouro em custódia doméstica e reforço de posições via entidade multilateral pública.

3 - Rebalanceamento jurídico de custodiantes, com ênfase em bancos centrais e organismos menos expostos a interferências políticas.

4 - Ampliação de arranjos de pagamentos e linhas de swap com parceiros estratégicos, com cláusulas de soberania jurídica.

5 - Estratégia de comunicação técnica que reduza pânico e, ao mesmo tempo, sinalize que o Brasil não será refém.

O custo da inação — Soberania não espera
Não reagir agora tem preço alto e imediato. Em um cenário de congelamento parcial de reservas, o choque não virá apenas pelo câmbio. Atinge simultaneamente liquidez sistêmica, prêmio de risco soberano, crédito ao setor produtivo e capacidade do Estado de amortecer a turbulência. A lógica é simples. Se parte relevante do colchão externo fica indisponível por decisão de terceiros, o mercado refaz o preço do risco Brasil em horas e o país passa a operar sob ameaça permanente de nova rodada de coerção.

Há também o custo político. Quem dita o tempo passa a ditar a narrativa. Se a resposta brasileira vier depois do ataque, cada medida parecerá defensiva e tardia. O efeito informacional se torna multiplicador. Exportadores ajustam contratos, bancos redirecionam limites, investidores pedem prêmios maiores. O poder de barganha evapora no mesmo ritmo em que a percepção de soberania diminui.

A inação ainda cobra um pedágio silencioso na economia real. Empresas com exposição ao mercado norte-americano reduzem planos e adiam investimentos. Programas públicos que dependem de financiamento externo ficam vulneráveis a cláusulas de cruzamento com sanções. Governos estaduais e municipais sentem a pressão de caixa. Na outra ponta, a população percebe o aperto antes das explicações técnicas. É assim que a guerra híbrida vence sem precisar de um tiro.

O antídoto é um plano executável, com prazos e métricas. Primeiro, testes de estresse que simulem indisponibilidade abrupta de ativos por jurisdição, com rotas pré-planejadas de liquidez. Segundo, reengenharia jurídica de custódia, privilegiando contrapartes públicas e multilaterais menos sujeitas a captura política e elevando a parcela de ouro físico sob custódia doméstica. Terceiro, acordos de pagamentos que permitam compensação fora do circuito tradicional, reduzindo a necessidade de passar por chaves controladas por quem nos pressiona. Quarto, comunicação técnica e pedagógica, que informe sem alarmar e deixe claro que o Brasil tem redundâncias e não será refém.

Soberania não é uma declaração. É um conjunto de escolhas que se medem por resiliência quando o pior acontece. Se o Brasil não montar agora sua arquitetura de defesa financeira, corre o risco de descobrir no dia errado que seu cofre estava em outra jurisdição.

A lição da história
A história é implacável com os que subestimam o inimigo invisível. Rússia, Venezuela, Afeganistão — cada um, à sua maneira, ignorou sinais de que suas reservas estavam vulneráveis e pagou o preço da paralisia. O Brasil não pode repetir o erro.

Não se trata apenas de moeda, juros ou câmbio. O que está em disputa é a soberania em sua forma mais pura: a capacidade de um país decidir o destino de sua própria riqueza. Reservas internacionais não são abstrações contábeis, mas o escudo silencioso que protege o povo contra choques externos e chantagens. Quando esse escudo é capturado por jurisdições estrangeiras, a nação se torna refém de cliques em sistemas financeiros que nem sequer controla.

O Brasil ainda tem tempo para reagir. Pode diversificar custódia, ampliar acordos de pagamentos alternativos, repatriar ouro físico e construir uma arquitetura de defesa financeira que dialogue com sua inserção soberana no mundo multipolar. Mas o tempo é curto, e o inimigo já mostrou a disposição de atacar com tarifas, sanções e pressão militar.

A lição da história é clara: soberania não se implora, se constrói. A pergunta que fica, diante da sombra do confisco, é se o Brasil terá coragem de agir antes de ser forçado a reagir.

Este artigo foi publicado originalmente no site Brasil 247

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