ARTIGOS
A impossível neutralidade
Por MARIA CLARA BINGEMER
Publicado em 13/08/2025 às 16:35
Alterado em 13/08/2025 às 16:35
O drama que acontece em Gaza continua a comover o mundo e mobilizar pessoas. Trata-se de um conflito tão absurdo que convoca mentes e move corações em direções contraditórias. Ninguém que ainda respeite sua própria condição de ser humano pode deixar de compadecer-se com as crianças que definham por falta de alimentos ou com a multidão faminta que disputa a comida e a ajuda humanitária com instinto de sobrevivência feroz. Ao mesmo tempo, tampouco é sinal de humanidade tomar uma só perspectiva e ignorar o drama dos reféns – mortos ou vivos – e suas famílias condenadas na espera cruel que já dura quase dois anos ou ao luto doloroso que se estenderá até o fim da existência.
A violência continua se abatendo sobre aquela faixa ou franja de terra fazendo vítimas e derramando sangue inocente. A ânsia de poder de alguns poucos não deixa esmorecer o conflito que vitimiza a muitos. A destruição e a desolação reinam naquele lugar onde se envolvem uns e outros, israelenses e palestinos, de lados diferentes ou opostos a suas próprias identidades. Jornalistas são mortos, médicos são atingidos, a morte campeia sem trégua.
Em meio a essa tristeza tamanha, a figura de um homem chama a atenção: Pierbattista Pizzaballa, cardeal e patriarca latino de Jerusalém, a Terra Santa para judeus, cristãos e muçulmanos. A terra onde segundo o Salmo 87, todo homem nasceu. Juntamente com seu povo, ele enfrenta todos os dias a dor crua e inegável de constatar que naquela terra santa todo ser humano é impedido de viver.
Contra isso se insurge, fala, denuncia e age. “Temos católicos do Vicariato hebraico servindo no exército em Gaza, e católicos sendo bombardeados em Gaza. Não é fácil”, declara o Patriarca. Por outro lado, afirma também “Devemos deixar a política de lado, reunir-nos, rezar juntos (...).. Reconhecer o sofrimento do outro não é tão simples quando se está sofrendo".
Na situação que vive a população em Gaza, o único referente universal é Deus. Todos os outros são tão pobremente humanos, finitos e carregados de algum nível de ambiguidade. O pastor sente-se dolorosamente dividido diante da polarização que predomina à sua volta e diz cheio de angústia: “se estiveres próximo dos palestinos, os israelenses sentem-se traídos e vice-versa. Quando menciono o sofrimento de Gaza, os católicos hebreus falam-me das zonas afetadas pelos atentados de 7 de outubro e, por outro lado, os palestinos só pensam em Gaza. Todo mundo quer ter o monopolio do sofrimento.”
Neste contexto não são poucas as vezes em que o cardeal foi pressionado por uns e outros para não pender para lado algum e refugiar-se em uma protegida neutralidade. Ele se nega e queixa-se: “ Eles continuam me dizendo que devo ser neutro. Acompanhe-me a Gaza, fale com as pessoas que perderam tudo, e depois me diga como é possível ser neutro.”
Diante do sofrimento de seu povo, o cardeal escolhe estar com os que sofrem sem esconder-se e proteger-se em uma falsa neutralidade. Não é fácil, pois os que sofrem estão de um lado e de outro. O absurdo da guerra atinge uns e outros. E todos estão sob sua responsabilidade. Com todos está comprometido.
Para todos – em Gaza ou longe dela – a situação existencial deste homem é um testemunho pungente, mas admirável. Trata-se de alguém que com seus limites e quase sem recursos recusa-se a abrigar-se na neutralidade. Ela é impossível quando existe sofrimento e vidas são ceifadas diariamente.
Talvez não estejamos em Gaza. No entanto, onde estivermos nosso olhar deve voltar-se para esse epicentro da violência e da guerra hoje. Ao mesmo tempo, em nossa cidade, em nosso país, os conflitos acontecem diariamente. Com violência armada ou violência política. Violência da pobreza e injustiça ou violência dos grupos armados de diferentes facções, legítimas ou contraventoras.
É possível a neutralidade? Seguramente não. Ela não pode existir quando o que está em jogo é a vida e o futuro da criação de Deus. Escolher o sossego neutro não é uma opção. Resta-nos acompanhar o patriarca latino de Jerusalém em sua angústia que procura atender uns e outros, às vezes em meio a uma terrível incerteza. E por momentos voltar-nos para a única referência universal que é Deus. E rezar e pedir a luz e a força que por nós mesmos não temos nem podemos dar-nos.
Maria Clara Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio