ARTIGOS
A malha se embaralha
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 29/06/2025 às 08:35
Alterado em 29/06/2025 às 08:35
Tenho a ligeira sensação de que o nevoeiro se dissipa. E, aos poucos, a insânia se revela em toda sua impregnada ilusão, em todo seu delírio de grandezas imaginadas e insustentáveis à luz do bom-senso mais elementar.
A tal ponto que já se torna corriqueira a sensação de que não há lideranças consensuais e as linhas de comunicação se cruzam entre o real e o fantástico. E a cada dia que passa se espalha a certeza de que algo de muito doentio brota do espetáculo cotidiano de guerras que se iniciam com o mesmo absurdo com que nos querem convencer de que elas são vencidas ou perdidas numa espiral de notícias contraditórias.
De útil e até elucidadora, apenas a saída do proscênio do homem dos bilhões, afastado depois de provocar incessantes sobressaltos lá e aqui. Elucidadora sobretudo na ânsia com que revelou, voluntária ou involuntariamente, a estratégia do mergulho no absurdo da geopolítica da cobiça argentária essencialmente acumulativa e insaciável.
Não à toa se aprofundam as análises de um neofeudalismo a rondar o capitalismo pós-globalização em direção a um regime econômico em que o “hegemon” se vale da astúcia da desvalorização da própria moeda como sorvedouro de injeções maciças de investimentos.
Uma resultante possível da aparentemente tresloucada política de tarifas alfandegárias inimagináveis.
Varoufakis, o grego, nos elucida no Youtube e, de quebra, nos explica o porquê de o calcanhar de Aquiles de Trump ser a própria contradição entre o que o MAGA promete e o que não conseguirá cumprir.
Elucidativas também as análises de Obama e de Jeffrey Sachs, igualmente disponíveis nas redes, sobre o impacto do neoliberalismo no imoral desnível social trazido pelo abandono das regras e regulamentos que durante anos impediram o avanço antropofágico do capital monopolizador.
A desregulação dos mecanismos de proteção social acompanhada de politicas de redução do imposto de renda de grandes empresas e de bilionários na hipótese de que reverteriam no bem-estar social mostraram-se, ao contrário, regressivas com impacto relevante sobre a classe média e a classe assalariada em geral.
Nesta hora, é sempre bom lembrar de Milton Friedman, quando não escondia ser o único objetivo social da empresa dar lucro a seus acionistas. Lição que, infelizmente, não absorvemos.
Mas o que estamos a presenciar de mais grave e assustador hoje em dia é a tendência de vários segmentos sociais que, ao contrário de se mostrarem fartos desta espiral do canibalismo econômico e social, pretendem aprofundar ainda mais a alienação em que nos encontramos.
E da desregulamentação econômica se passa gradualmente ao desprezo e ao abandono de conquistas seculares da humanidade como o respeito ao Direito Internacional, aos Direitos Humanos, à integridade territorial, à soberania dos Estados e à lei em geral.
A primeira vítima nesta guerrilha é a Democracia, o respeito aos poderes constituídos e a solerte ideologia que só a autarquia, a ditadura, o despotismo seria capaz de reduzir a insânia econômico-social que estamos a presenciar.
A crescente repulsa da sociedade brasileira aos movimentos de antagonismo do Congresso Nacional, sobretudo os derivados da absurda insistência de congressistas em não reconhecer a inaceitável insistência em que bilhões de reais possam ser distribuídos como emendas parlamentares, sem transparência nem rastreabilidade, tende a produzir o fenômeno mais importante deste ano. E certamente das eleições para a renovação do Congresso em 2026.
Mais absurda ainda é a suposta tentativa de fazer com que o Senado Federal possa rever decisões do Supremo como se não coubesse àquela Corte decidir sobre matéria constitucional.
Na realidade, a tendência a desrespeitar o Poder Judiciário é moeda corrente nos regimes autoritários, a começar pela Hungria de Orban, pela Venezuela de Maduro e talvez - que Deus nos proteja - dos Estados Unidos de Trump.
O que mais atinge o sentimento de desamparo do povo brasileiro é saber que todas essas firulas, todo esse debate bastardo apenas beneficiam os defensores dos regimes de força, civis, militares ou cívico-militares que buscam na opressão de seus povos um arremedo paspalho de paz social.
Mas, sobre este ponto, a sociedade brasileira está mais do que escolada. Descolada.
*Embaixador aposentado