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'Laudato Si': dez anos de uma carta encíclica

Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER

Publicado em 25/05/2025 às 11:52

Alterado em 25/05/2025 às 11:52

O dia 24 de maio de 2025 marca para a humanidade, o planeta e para a vida em geral um importante aniversário. Festejam-se nele os 10 anos da carta encíclica “Laudato Si", do saudoso e querido Papa Francisco, recentemente falecido. Aniversário de uma esperança feita palavra. De uma aposta pela vida acima de tudo e apesar de tudo. De uma iniciativa da Igreja que na pessoa do bispo de Roma e Pastor universal, dirige-se a todos clamando pelo cuidado da casa comum.

O documento papal teve um alcance incomum. Há muito não se via uma recepção tão favorável e mesmo entusiasta e admirativa com respeito a um documento papal. A “Laudato Si” foi saudada e apreciada por pessoas e grupos de todas ideologias e credos, ou ainda por aqueles e aquelas que não pertenciam a credo ou instituição alguma.

Francisco convoca já desde o início seu xará de Assis. O texto começa então com palavras deste último. “Laudato Si”, que se traduz por “Louvado sejas” é o início do famoso Cântico das Criaturas do Poverello de Assis, o qual coincidentemente completa 800 anos de existência. A encíclica de Francisco é mais um fruto desse belo texto. A quem louva Francisco de Assis? Ao Senhor seu Deus : Louvado sejas meu Senhor. E segue louvando o Senhor em todas as suas criaturas. Não apenas as criaturas humanas, mas também as não humanas. Tudo que vive e respira. Tudo que é vivo.

A Encíclica chama a terra, nossa casa comum, com doces nomes: mãe, irmã, amiga. E afirma uma e outra vez nossa comunhão de existência e de identidade com ela. A terra não é um personagem inferior à humanidade, sobre quem esta última tem direitos e poderes, sentindo-se autorizada a espezinhá-la, dominá-la despoticamente, sugar-lhe os recursos e abusá-la desavergonhadamente.

Ao fazer isso, nossa geração submeteu a terra a sua ganância de crescimento e lucro. Devastou os recursos naturais, provocando a imensa e catastrófica crise climática que agora vivemos. Os negacionistas de plantão dizem que exageramos e não podemos frear o desenvolvimento. A terra responde com seu sofrimento esterilizado pelo estupro coletivo que padece há muito tempo.

Esse diagnóstico alarmante vem sendo trabalhado por várias áreas do saber e por pensadores de todas as pertenças. A novidade da Laudato Si é conectar indissoluvelmente e para sempre a crise social com a crise ecológica. Justiça social e Justiça ambiental andam juntas e de mãos dadas. Quando se agride a terra, se espolia a humanidade de seu futuro e de suas possibilidades existenciais. Quando o ecossistema é agredido e empobrecido, as primeiras vítimas são os pobres que não conseguem mais encontrar recursos para viver, alimentar-se e situar suas famílias em segurança. A grande roda da vida atinge tudo e todos.

Francisco, na Laudato Si, demonstra que a crise climática não interessa apenas às ciências da natureza e às ciências sociais. Mas convoca de perto e intensamente as ciências humanas e entre elas a teologia. A conversão ecológica à qual a Laudato Si chama e convoca é, pois, um “lócus” teológico. O planeta em crise chama a todos a uma conversão a uma ecologia integral. E faz apelo à teologia a repensar em maior profundidade a teologia da criação.

O cristianismo e seu discurso teológico foram acusados de haver promovido uma série de atitudes prejudiciais à natureza. Assim também foi a teologia cristã denunciada como sendo antropocêntrica, vendo e valorizando apenas o ser humano, desconsiderando os outros seres vivos que povoam o planeta e a terra que é casa de todos.

A “Laudato Si” tem provocado a expansão de uma corrente teológica que se impõe como indispensável hoje: a ecoteologia que surge como tentativa de resposta à crítica do antropocentrismo cristão propondo uma mudança de paradigmas e visando o aparecimento de uma mentalidade ecológica construtiva. Fazendo uma leitura ao mesmo tempo crítica e positiva das escrituras judaicas e cristãs passa a ocupar-se de questões ambientais.

A bela encíclica de Francisco afirma que o projeto de Deus é de vida e não de morte. Portanto, todo e qualquer ataque ou negligência com respeito à vida não é de Deus. Mais que isso: Deus é vida em si mesmo. É o ardente amante da vida. Portanto, tudo que leva à morte não tem identificação com Deus.

Às vésperas deste aniversário quando escrevo este texto, recebo a morte do grande Sebastião Salgado. Com sua lente potente e seu olhar iluminado foi um dos mais ilustres promotores do amor pela terra e do cuidado com a casa comum. Que esse promotor da justiça e da beleza descanse em paz. E que seu legado nos inspire.

 

Maria Clara Bingemer. Professora do departamento de teologia da PUC-Rio

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