ARTIGOS

O preço da verdade: R$ 600 mil

Por SIDNEY STAHL

Publicado em 24/05/2025 às 14:59

Alterado em 24/05/2025 às 14:59

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Por um advogado que ainda pode escrever (por enquanto)

Em um país onde o salário-mínimo mal cobre as necessidades básicas de uma família, descobrimos o verdadeiro valor da informação pública: exatos R$ 600 mil. Esse é o preço que uma jornalista e um jornal devem pagar por ousar reportar sobre a remuneração de uma desembargadora. Aparentemente, falar sobre dinheiro público virou objeto de ponderação de direitos fundamentais no Brasil de 2025, com a balança pendendo curiosamente para um lado.

Vivemos numa era jurídica fascinante. O cidadão comum? Tem os dados financeiros expostos ao menor atraso na conta de luz, claro, porque transparência é fundamental. Já a alta magistratura? Ah, esses gozam de um manto protetor: qualquer menção ao holerite vira “dano moral”. A isonomia constitucional nunca foi tão criativa!

Vamos ao cálculo técnico-jurídico: se cada reportagem sobre salários do Judiciário custar R$ 600 mil em danos morais, quanto custaria cobrir os vencimentos dos 18 mil magistrados do país? A resposta é simples: o PIB nacional. Mas calma, existe solução mais barata: autocensura. Não dói no bolso, só na democracia, na transparência e no direito constitucional à informação. Pequenos detalhes.

A autocensura, afinal, não gera custas processuais. Exceto, é claro, o custo social para a democracia, a transparência e o direito constitucional à informação, garantido pelo art. 5º, XIV da Constituição Federal. Pequenos inconvenientes processuais em face da suposta afronta à reputação de quem é pago com recursos públicos.

A decisão que condenou a jornalista Rosane Oliveira e o jornal Zero Hora apresenta uma análise jurídica exemplar. Ela contrasta o direito da sociedade de ser informada sobre o uso dos seus impostos com o direito individual de um agente público de não ter seus salários, já divulgados publicamente, comentados pela mídia. A avaliação de princípios constitucionais raramente foi tão clara.

Para os jovens que ainda sonham com a carreira jornalística especializada em cobertura do Judiciário, segue um guia atualizado de como exercer a profissão sem incorrer em responsabilidade civil:

Um: Jamais mencione valores recebidos por autoridades públicas (especialmente se estiverem acima do teto constitucional), para evitar o dispendioso hábito de informar o cidadão.

Dois: Substitua termos como “salário” e “remuneração” por expressões tecnicamente vagas como “contrapartida pecuniária não especificada” ou “justo complemento”.

Três: Ao cobrir o Judiciário, limite-se a transcrever ementas e observações sobre a elegância das togas ou fotografias oficiais do tipo “as fotos do Excelentíssimo Ministro com a toga ficaram muito elegantes, apesar da ampla careca e o sorriso irônico falso e deselegante, que não pesaram no resultado final”.

Quatro: Mantenha sempre uma provisão contábil de R$ 600 mil para cada reportagem investigativa, a título de contingenciamento processual.

Melhor ainda: abandone o jornalismo investigativo e dedique-se a cobrir súmulas vinculantes e enunciados de jornadas de direito civil (menos a proposta de reforma).

É reconfortante saber que o Grupo RBS anunciou que vai recorrer da decisão. Afinal, ainda existem aqueles que insistem na ultrapassada interpretação de que informação pública deve ser, conforme a Lei de Acesso à Informação, efetivamente… pública.

Há algo juridicamente perturbador na transparência. Ela expõe assimetrias remuneratórias, questiona verbas indenizatórias e, pior de tudo, permite que cidadãos comuns formem juízos de valor baseados em dados oficiais. Que risco à estabilidade institucional!

Quando a ex-presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Iris Medeiros Nogueira, ajuizou ação indenizatória contra a jornalista e o jornal, ela não estava apenas exercendo seu direito constitucional de acesso à justiça — estava estabelecendo um precedente jurisprudencial. Um recado processual claro para qualquer repórter que ouse analisar contracheques públicos: constitua advogado (se é que vai valer alguma coisa).

A sentença afirma que as reportagens associaram a magistrada a “suposto privilégio imoral ou injustificado”. Curioso como a mera exposição de dados oficiais pode ser interpretada como associação a privilégios. Seria porque os valores em questão realmente destoam da realidade remuneratória da maioria dos jurisdicionados? Não, certamente deve ser uma questão de animus injuriandi vel diffamandi presumido.

A doutrina constitucionalista denomina “efeito resfriador” (chilling effect) quando decisões judiciais criam um ambiente de autocensura por temor a sanções desproporcionais. Com R$ 600 mil de “resfriamento”, o jornalismo brasileiro não está apenas sob efeito inibitório — está em estado de congelamento judicial.

Imagine a cena nas assessorias jurídicas das redações país afora: “Temos uma pauta sobre verbas extraordinárias no Tribunal tal.” “Interessante, mas temos provisionamento para eventual sucumbência de R$ 600 mil?” “Não.” “Então sugiro uma matéria sobre as recentes alterações no Código de Processo Civil” (do civil não pode, já alertei).

O mais irônico é que a própria Constituição, tão citada na fundamentação da sentença, garante em seu artigo 5º, IX, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Aparentemente, esse dispositivo estava em cláusula de reserva de ponderação.

Se R$ 600 mil é o quantum indenizatório por informar sobre remunerações públicas, qual seria o valor de outras informações de interesse coletivo? Quanto custaria, em termos de responsabilidade civil, reportar sobre nepotismo? (não que eu ache que exista). Sobre conflitos de interesse? Sobre decisões controversas?

A mensagem jurisprudencial que emana dessa condenação é clara: jornalismo investigativo é um risco processual que poucos veículos podem assumir. E a sociedade? Bem, a sociedade que se contente com as informações que as autoridades julgarem conveniente disponibilizar nos portais de transparência, sem análises críticas.

O Grupo RBS, ao anunciar que vai recorrer, reafirmou “a defesa da liberdade de expressão e informação como princípios fundamentais da democracia”. Uma posição juridicamente corajosa, sem dúvida. Mas em um país onde informar pode custar R$ 600 mil em indenizações, a coragem processual pode ser um luxo inacessível para veículos de menor capacidade econômica.

Com decisões como essa, o futuro da jurisprudência brasileira sobre liberdade de imprensa nunca esteve tão promissor. Em breve, nossas manchetes serão obras-primas da neutralidade axiológica, cuidadosamente elaboradas para não suscitar qualquer pretensão indenizatória de quem ocupa cargos públicos, salvo se for em relação a alguém da direita.

As redações serão ocupadas não por repórteres investigativos, mas por especialistas em direito constitucional e advogados calculando riscos processuais. As matérias de capa tratarão exclusivamente de temas juridicamente seguros como ementários de jurisprudência (sem comentários críticos) e dicas de jardinagem.

E quando algum cidadão juridicamente leigo perguntar: “Mas e a fiscalização dos poderes públicos? E a transparência? E o direito à informação?”, a resposta técnica será simples: “Sinto muito, isso pode configurar dano moral indenizável em R$ 600 mil. Você pode arcar com os ônus sucumbenciais?”

Enquanto isso, a segurança jurídica brasileira continuará sua lenta transformação em algo irreconhecível, onde o poder se esconde atrás de togas e sentenças, e a imprensa — aquela que deveria ser os olhos fiscalizadores da sociedade — é forçada a desviar o olhar por receio de condenações.

Parabéns aos operadores do direito envolvidos. A restrição à liberdade de imprensa nunca foi tão tecnicamente fundamentada, nem tão eficiente, ou não.

Nota do editor: Este artigo foi escrito com plena ciência dos riscos processuais envolvidos, incluindo potencial indenização de R$ 600 mil. Consideramos um investimento na democracia constitucional que ainda tentamos preservar.

* Sidney Stahl é advogado formado pela PUC/SP onde se pós-graduou em Direito Constitucional e Tributário e ministrou aulas de Direito Constitucional.

Artigo originalmente publicado no site claudiodantas.com.br

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